Ensaio sobre a Bíblia

Recentemente li sobre uma entrevista dada pelo reverendo Caio Fábio, cujos comentários inconsequentes sobre a Bíblia geraram muita polêmica (assista aqui). O assunto me fez pensar um pouco sobre a Bíblia como uma obra literária, sua relevância para os dias de hoje e a questão de sua inerrância.

Algo que os céticos sempre trazem à tona sobre a Bíblia é que ela é um mero livro escrito por homens. De fato, ela não foi escrita por Deus! Seus muitos livros, poemas e cartas realmente foram escritos por seres humanos, ora em tábuas de pedra, ora em papiros, ora em pergaminhos. E eles usaram tinta também, olhe só! Que se saiba, a única obra de autoria do Criador foram as tábuas de pedra contendo os dez mandamentos (vd Ex 31.18). Entretanto, o fato de Deus não ter escrito com sua própria caneta celestial dourada as palavras contidas na Bíblia significa que a Bíblia não é a Sua Palavra? A maioria dos mais famosos livros antigos da história não foi escrita por seus autores, que apenas ditavam o texto e eram escritos por seus amanuenses. Por que Deus não poderia se utilizar de amanuenses também?

Isso levanta uma outra questão teológica bem antiga: a Bíblia é a Palavra de Deus ou ela apenas contém Suas palavras? A diferença entre uma posição e outra é que, se a Bíblia é a Palavra de Deus, tudo o que ela contém vem dEle e é livre de erros, enquanto que se ela apenas contiver Suas palavras, alguma coisa pode ser divina e verdadeira, enquanto outras podem ser meramente humanas e dispensáveis. Neste ponto, Paulo, o apóstolo, faz a seguinte afirmação:

“Toda a Escritura é divinamente inspirada e proveitosa para ensinar, para responder, para corrigir, para instruir na justiça” – 2Tm 3.16

Para Paulo, “toda a Escritura” significava o compêndio de livros que chamamos hoje de Antigo Testamento. Alguns ainda hoje debatem se no primeiro século da era cristã já havia um cânon estabelecido das Escrituras judaicas, mas creio ser esta uma discussão fútil. Jesus e os apóstolos falavam a todo tempo da “Lei e os profetas” e isso é exatamente o que as Escrituras eram para eles no tempo. Portanto, a Escritura mencionada por Paulo compreendia os cinco livros da Lei de Moisés, os livros escritos pelos profetas (desde Samuel até Malaquias), além dos Salmos, Provérbios de Salomão, o livro de Daniel, dentre outros; o Antigo Testamento. De acordo com Paulo, TODO o Antigo Testamento é inspirado por Deus.

A Bíblia é divina ou humana?

Concentremo-nos, então, na afirmação de que a Escritura é divinamente inspirada. Os antigos gregos acreditavam nas musas. Segundo essa crença, seres divinos os inspiravam (literalmente sopravam dentro de suas mentes) com idéias sobre arte e ciência. Este conceito de inspiração é usado até hoje, muito embora o aspecto metafísico tenha sido gradativamente abandonado. O que Paulo quer dizer é exatamente isso: que Deus, através do seu Espírito, “soprou” a mente de homens escolhidos por Ele, habilitando-os a escrever o que Ele queria que escrevessem. Eles foram seus amanuenses. Quanto a isso, o apóstolo Pedro também tem algo a dizer:

“Nenhuma profecia da Escritura é de particular interpretação (…), mas homens santos de Deus falaram inspirados pelo Espírito Santo” – 2Pe 1.20,21

Veja que isso não significa que eles entraram num transe e copiaram ipsis litteris o que Deus lhes falou. Na verdade o processo foi mais, digamos assim, divino. Cada escritor transmitiu ao texto seu próprio estilo literário, seu próprio fundo cultural e, mesmo, sua própria capacidade de escrever. Alguns foram reis e príncipes, enquanto outros eram apenas agricultores. O “grande lance” é que eles escreveram as coisas que Deus desejou comunicar através deles. Isso significa, inclusive, que o Criador não lhes revelou tudo sobre aquilo que escreveram, e até mesmo que alguns deles não compreendiam totalmente o que comunicavam. De fato, a profecia bíblica tem um pouco deste aspecto, onde muitas vezes o profeta comunica, mas nem sempre entende.

A escolha divina em utilizar-se de meros homens para comunicar sua mensagem à humanidade teve um preço, todavia. Como falar de coisas espirituais para homens carnais? Como comunicar verdades que fogem à nossa realidade com palavras com significado restrito? Temos então que a Bíblia é um livro cheio de antropomorfismos, metáforas e parábolas. Isso muitas vezes é tido como um elemento dificultador e até denegridor da confiança no texto, porém isso é um mero reflexo de nossa própria dificuldade em ouvir Deus falar. Perceba que a falha não está em Deus, mas em nós. É como se fôssemos crianças de um ano de idade e Deus fosse o pai, que precisa nos dar comandos e explicações monossilábicas, pois, de outra sorte, não entenderíamos nada!

A Bíblia como literatura humana, cientifica e histórica

Um outro ponto discutível sobre a Bíblia é sua contribuição para o conhecimento humano. Em geral ela é tida apenas como um livro religioso, sem nenhum compromisso com fatos históricos e científicos. Além disso, alguns acadêmicos consideram o texto bíblico muito subjetivo, com falhas de cronologia e falta de coerência. Para compreendermos o porquê de a Bíblia ser como é, precisamos primeiro tentar entender os objetivos divinos. Para que a Bíblia foi escrita? Seria ilógico imaginar que o objetivo de Deus fosse meramente nos contar a história do povo hebreu e seus sucessivos castigos e arrependimentos, ou então nos dar uma aula de ciências exatas e biológicas, a fim de que pudéssemos finalmente saber como Ele fez o mundo. Para essas questões mundanas, Ele nos deu um cérebro e capacidades extraordinárias – fruto de Sua imagem e semelhança – de forma que não precisamos de uma Bíblia para tentar compreendê-las. Mas, por outro lado, quem pode, por meio da ciência, do cérebro, do supercomputador entender a mente de Deus e seus desígnios? Einstein desejava isso, mas percebeu, no fim, que esta era uma tarefa impossível. A conclusão a que chegamos é que a Bíblia foi escrita para que Deus se apresentasse a nós e comunicasse Seus planos para a humanidade. Neste sentido, podemos sim dizer que a Bíblia é um livro religioso (no sentido de “religar” o homem ao Criador), mas não religioso.

Qual seria o destino de um homem apaixonado, enviando uma carta de amor que, por um lado expressasse fielmente todos os sentimentos que tem no coração, mas, por outro, traçasse um perfil pessoal completamente mentiroso? Como poderia a moça acreditar em seus sentimentos quando descobrisse que todo o resto é mentira? A mesma coisa se aplica a Deus. Ele jamais falaria conosco pelas páginas de um livro que, em parte é verdade, em parte é mentira. Para ser mais claro no que quero dizer, muito embora a Bíblia não seja um livro com pretensões históricas ou científicas, ela não erra quando narra fatos históricos ou naturais. Isso não significa que a informação bíblica satisfaça aos acadêmicos, de forma alguma, haja vista que ela não se adéqua aos rigores da ciência. Entretanto, a Bíblia não contém nenhuma informação inverídica sobre qualquer fato, mesmo que não pareça coerente ao olhar do crivo científico. Uma prova disso é o relato da criação do mundo. Deus não estava interessado em explicar a quantidade de energia que estava concentrada no início do universo ou mesmo se as galáxias surgiram antes da Terra. Ele não quis dar maiores explicações sobre a constituição física do homem e nem de que maneira a primeira vida foi formada nos oceanos. Ele simplesmente quis dizer que foi Ele quem fez tudo isso! Não obstante, o relato da criação não fala de nada fictício, como se Deus houvesse criado os unicórnios no quinto dia ou os elfos no sexto. Até mesmo a teoria evolucionista concorda com a Bíblia quando descreve a ordem em que vegetais e animais surgiram sobre a face da Terra. E se um dia da Criação equivaler a um milhão de anos terrestres? Deus não está interessado em falar disso, ele quer nos informar do fato de que Ele é o Criador!

De forma semelhante, a Bíblia é repleta de fatos históricos. Diferente de outros textos religiosos, como o Mahabarata hindu, as Escrituras judaicas são, até hoje, utilizadas por arqueólogos, filólogos e historiadores para realizar descobertas históricas. Isso não impede que a relação dessas ciências com a Bíblia seja ridiculamente instável. Ora elas se debruçam sobre o texto, confiantes de que ele dará as respostas que buscam, ora elas ridicularizam e vituperam os fatos apresentados como mito. Entretanto, se fizéssemos um placar deste embate secular, veríamos que a Bíblia permaneceu sempre certa, enquanto a história precisou ser reescrita muita e muitas vezes. É aquela questão comentada anteriormente: como a Bíblia não satisfaz ao crivo da Ciência, esta, com sua arrogância costumeira, tende a rechaçar aquela como incoerente e mitológica.

A questão da interpretação bíblica

Finalmente resta aqui avaliar uma das questões cruciais relativas à Bíblia, que é a sua correta interpretação. Na verdade, muitos males perpetrados pelo homem têm sua causa justamente em más e tendenciosas interpretações da mensagem bíblica. Sendo a Bíblia um livro humano, porém portador de uma mensagem divina que, a fim de ser devidamente comunicada, vale-se de parábolas e metáforas, como, afinal, podemos ter certeza de que a lemos corretamente?

Novamente Paulo traz um ensino a esse respeito:

“O homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente.” – 1Co 2:14

Vemos que o próprio apóstolo admite que, perante a racionalidade humana, a mensagem bíblica é incoerente, parece loucura, mas não que ela o seja de fato. Isso se deve apenas ao fato de nós, seres humanos, não termos a capacidade de compreender a “linguagem” do Espírito de Deus. Neste caso, é indispensável a supervisão do próprio Espírito Santo para uma correta interpretação. É claro que, para o cético, esta afirmação continua a soar como loucura, mas, afinal, as Boas Novas são mesmo loucura para o mundo. Sendo assim, é impossível termos uma correta interpretação e aplicação da mensagem das Escrituras se o próprio Deus não nos conceder a capacidade para isso.

Ademais, gostaria de destacar um último ponto relativo às duas partes de nossa Bíblia moderna: o Antigo e o Novo Testamento. Como foi dito acima, no tempo de Jesus e dos apóstolos só o que havia era o Antigo Testamento, que já era, então, considerado como Escritura Sagrada. Mas, e os Evangelhos, cartas apostólicas e o Apocalipse? Qual a razão para alguém considerar o Novo Testamento também como divino? Aqui entra o papel de Jesus Cristo como interpretador das Escrituras judaicas. Humanamente falando, Jesus era um rabino, um “mestre da Lei” que, diferente dos escribas de sua época, não interpretava a Lei e os Profetas sob a ótica da tradição, mas de sua própria. Sendo a própria Palavra, o Verbo de Deus (vd Jo 1.1), Jesus nos trouxe a correta interpretação das Escrituras judaicas. Neste ponto, concordo com o citado Rev. Caio Fábio quando ele afirma que a correta interpretação das Escrituras procede de Jesus, e que devemos sempre ler toda a Bíblia sob sua ótica. Em consequência disso, temos que os escritos apostólicos procedem da direta influência de Jesus, tanto quando estava na terra, quanto depois, quando enviou seu Espírito para guiar os seus. Sendo assim, podemos, sem sombra de dúvida, considerar também o Novo Testamento como Escritura Sagrada.

Leia mais sobre a Bíblia.

Leia mais sobre o papel dos apóstolos na fé cristã.