Deus

O que conhecemos a respeito do ser chamado “Deus” provem das Escrituras Sagradas dos hebreus. Enquanto cada cultura tem seus próprios deuses, quando nos referimos a Deus, como d maiúsculo, estamos falando do único ser divino existente, o qual criou todas as coisas, tanto as visíveis, quanto as invisíveis. Embora haja desvios neste sentido, a cultura ocidental, fortemente influenciada pela religião cristã, adotou esta crença como um fundamento, cumprindo a profecia de Noé: “Alargue Deus a Jafé, e habite nas tendas de Sem…” (Gn 9:27).

Uma breve história de Deus

O termo “Deus” tem sua origem nas palavras semitas “el“, “eloah” (singular) e “elohim” (plural), que significam, literalmente, “forte” e “poderoso”. Era um termo comumente usado entre os povos de língua semita para descrever seus deuses, e no caso dos cananeus, para descrever o maior deus do seu panteão. El era o nome da principal divindade, o criador e pai dos demais deuses, como Baal e Aserá. Uma vez que a língua hebraica não desceu do céu, não é de espantar que o mesmo termo usado pelos politeístas cananeus fosse também usado pelos monoteístas hebreus. Afinal, o hebraico bíblico é fruto de uma mistura linguística caldéia, egípcia e também cananeia.

Mas, apesar das semelhanças, o Deus bíblico sempre foi descrito como único e maior que todos os demais. Existe ainda hoje dúvidas se os hebreus eram de fato monoteístas ou henoteístas (criam que existiam muitos deuses, mas que o seu era maior que todos), mas se existe algo que distingue não apenas a fé mas a própria história dos hebreus, é que o Deus de Abraão era inigualável entre os demais. O livro de Jó, considerado um dos primeiros escritos hebraicos, já mostrava Elohim como o Criador de todas as coisas, sob cuja vontade soberana se submetiam não apenas as coisas criadas, mas também o mundo invisível. Em Gênesis, ele é descrito como aquele que, por sua palavra, criou os céus e a terra. Logo em seguida, em Deuteronômio, ele é chamado de “único” (ou “um”), denotando que não há outro Deus além dele.

Como visto, um dos termos usados para chamar Deus é Elohim. Na prática, elohim é plural de eloah, e é comumente traduzido do hebraico como “deuses”. Entretanto, quando o termo é usado em relação ao Deus de Israel, os adjetivos e verbos sempre são usados no singular. Isso demonstra que “Deuses” é um termo diferenciado para o Deus de Israel, que embora exista gramaticalmente como plural, refere-se a apenas uma pessoa. Uma passagem que traz isso de forma interessante é o Salmo 82:1, onde se lê:

Elohim está de pé na assembléia de El; entre os elohim Ele julga.

Em hebraico, os verbos “está de pé” e “julga” estão no singular, claramente se referindo a um único ser, apesar de chama-lo Elohim. Entretanto, o segundo elohim claramente se refere a uma assembléia (coletivo), e isso é confirmado pelo verso 6 (“sois deuses…”). Portanto, o plural atribuído a Deus é um recurso literário tipicamente hebraico, chamado pelos estudiosos de “plural majestático”.

Os atributos divinos

Além de descrevê-lo como o criador de todas as coisas e o maior entre todo e qualquer ser espiritual – ou como disse o salmita: Ele é o “Deus dos deuses” (Sl 136:2) – as Escrituras também descrevem seus atributos. Os deuses pagãos, na maioria das vezes, possuem atributos como força sobrenatural, a capacidade de mudar de forma, passear entre os homens de modo invisível e, claro o poder de criar coisas. Entretanto, muitos desses mesmos deuses são descritos à imagem e semelhança dos homens: eles ficam irados, perdem o controle, se vingam com brutalidade, se apaixonam (às vezes pelos mortais), se casam e muitos deles vivem em dissolução moral (ao menos para os padrões cristãos). Diferente deles, o Deus de Israel é santo, significando que ele existe completamente separado do mundo físico e suas degradações e pecados.

Sendo mais específico, Deus não compartilha da natureza humana, muito menos de suas necessidades e desejos. Logo, Ele não precisa de comida ou bebida; Ele não precisa coabitar ou se casar; Ele não comete erros, nem peca, e até mesmo a sua ira e a sua vingança são tratadas como justiça contra o erro, não como uma atitude apaixonada. Em suma, Deus é um ser puramente espiritual e, como tal, não possui nenhuma característica atrelada à existência carnal. Inclusive, é parte da crença judaico-cristã que Deus sequer tem uma forma definida, justamente por não ter um corpo carnal, ainda que se suponha que ele tenha um “corpo espiritual”.

Portanto, sendo espírito, Deus não está submetido às limitações do mundo físico. Por causa disso Ele é um ser eterno; Ele não morre, não envelhece, não teve começo. Ele é onisciente, conhecendo absolutamente tudo o que já ocorreu, está ocorrendo e ainda ocorrerá. Este último atributo tem um nome específico: presciência. E por fim, mas não menos importante, Ele é onipotente, Todo-Poderoso, significando que não há nada impossível para Ele.

O nome de Deus

“Deus” não é um nome, mas um título. Tem o sentido de “aquele que é poderoso”, “o nosso herói”. Possivelmente El fosse usado como um nome próprio pelos cananeus, mas nunca o foi pelos hebreus. Títulos como El Elyon (Deus Altíssimo) e El Shaddai (Deus Todo-Poderoso) não eram nomes próprios, mas adjetivos, nomes que revelam atributos. A partir do momento em que Deus inicia o seu relacionamento com o povo de Israel, ainda nos primeiros estágios do chamado de Moisés, Ele revela que tem um nome próprio, o qual ninguém ainda havia conhecido:

Apareci a Abraão, a Isaque e a Jacó como El Shaddai, mas por meu nome YHWH não fui conhecido por eles. (Gn 6:3)

YHWH é a representação da palavra hebraica יְהוָֹה, também chamada de tetragrama (as quatro letras). Não sabemos ao certo qual a real pronúncia deste nome, sendo grafado nos textos hebraicos mais modernos como Yehowah, Yehwah, Yehoa e Yehowi. Em português tradicionalmente se lê Jeová, mas os acadêmicos preferem Javé (ou Yahweh, em inglês). Se a pronúncia é duvidosa, o significado do tetragrama é mais bem fundamentado. Segundo os hebraístas, YHWH é uma contração de diferentes tempos verbais do verbo ser. Além disso, o próprio Deus dá essa pista quando, ao se revelar a Moisés, lhe diz: “Disse Deus a Moisés: “Eu Sou o que Sou. É isto que você dirá aos israelitas: ‘Eu Sou’ me enviou a vocês” (Ex 3:14) . “Eu sou o que sou” seria mais corretamente traduzido como “Serei o que serei”, mas o sentido é o mesmo: Deus é eterno e subsistente. Não à toa, as bíblicas hebraicas traduzem o tetragrama por “O Eterno”.

O nome de Deus tem sido usado pelo seu povo desde que foi revelado. Vários nomes de personagens bíblicos carregam-no, como Yehoshua (Josué), Yehoachim (Jeoaquim), Eliyahu (Elias) e Yeshayahu (Isaías). Porém, com o tempo, os judeus preferiram não declarar abertamente o Nome por medo que ele fosse blasfemado pelos pagãos. Assim, quando a Bíblia Hebraica foi traduzida para o grego, YHWH tornou-se Kyrios (o Senhor), sendo este o termo amplamente usado nas Bíblias em português, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. Os próprios judeus não o utilizam mais, preferindo substituí-lo por Adonai (meu Senhor) ou HaShem (o Nome). O resultado é que hoje, basicamente ninguém, nem mesmo entre os judeus, tem muita certeza sobre como pronunciar o Nome divino corretamente.

O modus operandi divino

Em relação à onipotência de Deus, existe um questionamento filosófico, popularmente chamado de Paradoxo da Pedra, que diz o seguinte: É possível que Deus crie uma pedra tão pesada que nem mesmo ele possa levantá-la? E a resposta é SIM. E isso responde não apenas essa suposição teórica, mas outras questões mais complexas como o problema do mal. Estou chamando isso de modus operandi, ou seja, o modo de agir de Deus.

Se Ele decidisse criar uma pedra tão pesada que nem mesmo ele pudesse erguê-la, isso provaria que de fato Ele é onipotente. Mas a sua onipotência trabalha em sintonia com a sua Soberania, ou seja, Deus faz o que bem entende. Então, a pedra é inamovível porque Ele assim a fez, mas também porque Ele próprio decidiu que Ele não seria capaz de movê-la. Em outras palavras, a qualquer momento Ele pode simplesmente pensar e a pedra não apenas seria movida, mas pulverizada. Isso se relaciona diretamente à questão do livre-arbítrio.

Pense bem: se Deus é onisciente, Ele sabia que o ser humano cederia à tentação da serpente e comeria do fruto proibido. Ora, se Ele sabia disso, por que então decidiu criá-lo do mesmo jeito? A resposta é: porque ele quis! O complemento é: porque ele já havia proposto que este ser, assim como os próprios anjos criados anteriormente, teria liberdade de escolha. Como o ser humano teria liberdade se não houvesse a possibilidade de rebelião? A conclusão é que Deus escolheu “correr o risco” da queda em nome da liberdade do homem. Escolha soberana. Isso também resvala na não interferência divina na escolha do homem. Deus tem todo o poder de mudar o pensamento de quem quiser, mas ele ESCOLHE não agira assim. Deus não obriga ninguém a amá-lo justamente porque ele criou uma pedra tão pesada que ele próprio não pode levantar.

A questão da trindade

A doutrina da trindade determina que Deus é um, mas composto de três pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. As bases desta doutrina vêm desde o Gênesis, quando o próprio diz: “Façamos o ser humano à nossa imagem, conforme a nossa semelhança” (Gn 1:26), ou seja, diferente do que foi demonstrado acima, um verbo no plural é usado para Deus. Mas o embasamento mais objetivo é o uso frequente da fórmula trinitária “Pai, Filho e Espírito Santo” (Mt 28:19), usada direta ou implicitamente.

Não é possível destrinchar este assunto aqui, mas se utilizarmos apenas as Escrituras como base doutrinária, de fato percebemos Deus agindo de múltiplas formas, algumas difíceis de explicar. Gênesis 1:26 provavelmente é uma das mais complexas, especialmente porque tanto judeus quanto cristãos têm fortes argumentos para provar seus pontos – judeus defendendo a unicidade de Deus, cristãos a pluralidade trinitária. Mas outras questões também levantam debates. Por que um anjo, chamado o Anjo do Senhor, é apresentado como se fosse o próprio Deus, recebendo inclusive adoração? Qual seria a real natureza do Espírito Santo? Seria Ele apenas um poder ou força divina impessoal ou algo mais como o próprio Jesus dá a entender (cf Jo 14:23)? O próprio Jesus é tratado como Deus em várias Escrituras (p.e. Ap 7:10) e declara de forma inequívoca: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10:30).

O termo “trindade” não existe na Bíblia, nem no Antigo nem no Novo Testamento, sendo ao contrário, um termo teológico para explicar algo que permeia toda a Bíblia. A verdade é que nem as Escrituras Hebraicas, nem as interpretações e tradições judaicas e nem mesmo o Novo Testamento tratam do assunto de forma objetiva. Em termos de Antigo Testamento, há indícios de que Deus se manifestou de diferentes formas. A exegese judaica tentou explicar esses indícios, inclusive de formas surpreendentes (Leia mais sobre isso aqui). Os apóstolos compreenderam o caráter divino de Jesus, e até certo ponto beberam da tradição judaica, mas foram além e revelaram particularidades da relação entre Deus Pai, Jesus, o Filho e o Santo Espírito de Deus.

Por ora, o que importa afirmar de forma enfática, é que a fé cristã bíblica crê num Deus único, que subsiste eternamente e que é o Criador de todas as coisas, sejam principados, potestades, o universo e o ser humano. Em nenhuma passagem bíblica se pressupõe que Deus são dois ou três, ou que Ele tenha múltiplas personalidades. Na verdade, e isso contraria um pouco a teologia corrente, nem mesmo o conceito de “pessoas” é atribuído a Deus. Existe apenas um Deus, cujo nome é YHWH (Jeová, Javé, Yehoa) cujo trono está sobre tudo e todos. A relação entre o Filho e o Espírito são assunto para outro artigo.