A herança judaica da fé cristã

Uma releitura do Evangelho de João

O quarto Evangelho tem sido apontado como a origem de uma das coisas mais nefastas que o mundo cristão já produziu: o antissemitismo. Ao mesmo tempo, João é acusado de flertar com a filosofia grega, afastando-se da visão de mundo judaica. Mas será mesmo que João deprecia o povo judeu como um todo? E será que podemos encontrar respaldo judaico nas tradições por trás de algumas de suas afirmações?

“No princípio era a Palavra. E a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus”. Assim tem início o mais controverso dos evangelhos. Conforme atribuições da tradição cristã, João teria escrito seu relato tendo em mente um público: a igreja em geral; e um objetivo claro: provar que Jesus era o Filho de Deus, contra as heresias gnósticas que circulavam então. Neste Evangelho, Jesus é divino e se identifica com Deus a todo o tempo (haja vista o uso da expressão “Eu sou” mais de uma vez). Mas se por um lado ele é estimado pelos cristãos, e usado pela igreja como instrumento evangelizador, para alguns estudiosos e particularmente para os judeus, o Evangelho Segundo João mais fez mal do que bem. Ao retratar “os judeus” como inimigos de Cristo, João teria dado margem à criação de uma teologia antissemita nefasta que teve seu início já nos primeiros séculos da Era Cristã e que contaminou até homens de Deus como Lutero.

Relendo João em seu contexto

Mas será que esta era a intenção de João? Seria o “apóstolo do amor” um antissemita, odiando o seu próprio povo?! Teria ele esquecido que sua família, seus amigos, seus colegas apóstolos e em especial seu próprio Mestre era um judeu também?! Creio eu que se alguém pensa isso, pode significar três coisa: ou a pessoa não leu o Evangelho de João com cuidado, ou ela precisa afirmar que João sofria de algum tipo de desvio de personalidade ou esquizofrenia, ou então a própria pessoa é mal intencionada. Pois uma leitura cuidadosa revela detalhes fascinantes a respeito não apenas da mensagem que João queria passar, mas sobre o próprio autor do Evangelho.

A Memra conforme João

Comecemos do começo. Como já foi afirmado aqui, já nos dias dos apóstolos existia uma tradição, amplamente revelada nos Targumim aramaicos, a respeito da Memra de Deus. Memra é um termo aramaico equivalente a “Palavra”, em grego Logos. Como define a Enciclopédia Judaica, “No Targum, a Memra figura constantemente como a manifestação do poder divino, ou como mensageiro de Deus em lugar do próprio Deus, onde quer que os predicados não estejam em conformidade com a dignidade ou com a espiritualidade da Divindade” [ref]. Ou seja, o entendimento dos professores das Escrituras naqueles dias – de onde os Targumim se derivam – era de que Deus era exaltado demais para se levantar do seu trono e vir à terra falar com os mortais. Ao invés, ele enviava a sua Palavra, que era uma pessoa, um ser muitas vezes visível que carregava os atributos e a glória divinas, à semelhança do Anjo do Senhor (que inclusive podem ser a mesma entidade).

Quando João afirma que “todas as coisas foram feitas por meio dela [a Palavra]” e que “a Palavra fez-se carne e habitou entre nós” ele não se referia ao Logos de Platão, cuja definição está mais para uma espécie de razão por trás criação, uma verdade última, que acaba sendo divina. Já a Memra é uma espécie de emanação do próprio Deus bíblico. Um ser pessoal que procede de Deus, age separado dele, e ainda assim mantem um vínculo com Sua pessoa, ao ponto de ser adorado e glorificado e de falar como se fosse o próprio Deus. Isso se parece muito mais com o conceito do Evangelho de João, onde a Palavra aparece como alguém que estava com Ele na criação, que foi seu agente na criação de todas as coisas e que, por fim, deixou a glória divina para tornar-se um ser humano comum: Jesus de Nazaré. Logo, percebemos que, ao contrário do que se pensou por muito tempo, João está sendo altamente judaico aqui, evocando uma tradição de seu tempo, e interpretando-a à luz da revelação de Cristo.

Os judeus de João

Um dos pontos mais controversos do Evangelho de João é que os inimigos de Jesus são sempre apontados como “os judeus” (οι Ἰουδαῖοι). Existe um debate acadêmico se o termo grego deve ser sempre traduzido como “judeu” ou às vezes como “judaíta”, ou seja, alguém da Judéia. Sabemos que uma pessoa pode pertencer à etnia judaica, ser proveniente da Judéia e praticar a religião judaica. Mas também sabemos que uma outra pode pertencer à mesma etnia, ser proveniente da Galiléia e praticar outra religião. No primeiro caso, chama-la de “judeu” funciona nos três sentidos, mas para a segunda nem tanto. Ela seria um judeu galileu pagão, ou algo parecido. Por isso, o termo Ἰουδαῖος é controverso, e em especial no Evangelho de João pode ser mal interpretado.

Entretanto, uma leitura cuidadosa do texto revela a que tipo de uso João reserva a maior parte das referências aos “judeus” (mas nem todas). A primeira referência no Evangelho diz “E estava próxima a Páscoa dos judeus” (2:13). Aqui o sentido é dúbio: ele poderia estar dizendo que era a “Páscoa do povo judeu” ou “a Páscoa da religião judaica”. Eu pessoalmente prefiro a primeira leitura, mas independente do que se escolha aqui, o contexto não é negativo, logo não gera grandes problemas. Mas e quanto à passagem “E por esta causa os judeus perseguiram a Jesus, e procuravam matá-lo…” (5:16). Se estes “judeus” se referir a toda a raça judaica, tem o potencial de suscitar o ódio de cristãos (que não entendendo nada do que Cristo ensinou) contra os malditos judeus que perseguiram e mataram Jesus! Mas, será que João aqui está se referindo a todos os judeus?! Inclusive, no contexto desta passagem, um homem judeu é interpelado pelos “judeus” porque ele estava carregando a sua esteira, logo após ter sido curado por Jesus num sábado. Esse tipo de interpelação, ao longo de todos os Evangelhos, pertence aos fariseus e aos escribas/mestres da Lei. Poderia ser o caso de “os judeus” se referirem especificamente às lideranças religiosas do povo? Se não, vejamos outros exemplos.

João 7:13 afirma: “Todavia ninguém falava dele abertamente, por medo dos judeus“. Aqui o povo (o “ninguém” da frase) tinha medo dos líderes judeus (especialmente fariseus), uma vez que eles tinham o poder de impedir o acesso das pessoas à sinagoga. Inclusive em 9:22 é declarado objetivamente que o povo os temia porque “os judeus tinham resolvido que, se alguém confessasse ser ele o Messias, fosse expulso da sinagoga. E em paralelo a isso é dito em 12:42 que “…muitos dos principais creram nele, mas não o confessavam por causa dos fariseus, para não serem expulsos da sinagoga“. Creio que podemos inferir do cruzamento destas passagens que, pelo menos neste contexto apresentado, “os judeus” é sinônimo de “fariseus”.

Mas, nem sempre “judeu” é apresentado num contexto antagônico. Em uma passagem reveladora, Jesus está conversando com uma mulher samaritana. Judeus (etnicos e religiosos) odiavam os samaritanos, e vice-versa, pois em Samaria havia um culto e um templo rival ao de Jerusalém, enquanto os samaritanos diziam que eles eram o povo escolhido, não os judeus. Então, nesse diálogo, a mulher, em primeiro lugar, identifica Jesus como um “judeu”: “Como, sendo você judeu, pede de beber a mim, que sou uma mulher samaritana?” (4:9). Neste caso certamente o termo se refere à etnia de Jesus, uma vez que ele era galileu, não judaíta. A seguir ela pergunta onde, afinal de contas, seria o local correto para se adorar a Deus: em Jerusalém ou no Monte Gerizim? A resposta de Jesus é: “Vocês adoram o que não conhecem; nós adoramos o que conhecemos, porque a salvação vem dos judeus“. Ora, ora! Então o próprio Jesus de João se identifica como um judeu! E mais que isso, ele admite que os samaritanos não conheciam a Deus como os judeus, e que a salvação provinha do povo judeu! É impossível derivar qualquer antissemitismo destas palavras.

Percebemos então que o contexto determina como devemos entender “judeu” no Evangelho de João, e que sempre que o contexto é negativo – ou seja, de perseguição e conspirações contra Jesus – refere-se aos líderes da religião judaica, cuja perseguição a ele se revela também nos demais evangelhos. Sendo assim, a teologia antissemita derivada de João não procede de João! O mais seguro é falar sobre pessoas que tinham algum problema contra os judeus e que acabou por encontrar subsídios para odiá-los em uma má compreensão bíblica. Acredito que nem seja preciso dizer que qualquer teologia que estimule o ódio em qualquer forma a qualquer pessoa ou povo é anti-cristã e anti-bíblica. Impossível que o mesmo Mestre que mandou amar aos inimigos e que eximiu o seu povo de culpa ao interceder ao Pai “perdoa-os, pois não sabem o que fazem”, seria o mesmo que daria subsídios para que cristãos odiassem judeus. Beira ao ridículo.

O mais judaico dos Evangelhos?

Quando despimos o Evangelho de João dos dois equívocos atribuídos a ele: flertar com a filosofia grega e ser antissemita, fica mais fácil perceber quem é o autor por trás dele. João se revela um judeu profundamente conhecedor das tradições, da geografia e da cultura de seu povo. Ele é o único que põe na boca de Jesus a afirmação “eu sou judeu”. É o livro do Novo Testamento que mais utiliza expressões aramaicas, que era a língua falada pelos judeus na época, como Abba, Messias e Rabbi. Por sinal, também é o que mais atribui o título “Rabi” a Jesus, título este que só se tornou oficial com o Judaísmo Rabínico, quase um século depois. Ao mesmo tempo ele é o único que faz referência a várias festas judaicas além da Páscoa – ele cita Tabernáculos e a Festa da Dedicação, que nem é bíblica – e coloca Jesus peregrinando a Jerusalém para participar delas. Jesus come a Páscoa com os seus discípulos e é identificado com o Cordeiro que tira o pecado do mundo. E de forma ainda mais surpreendente, ele admite que o Sumo Sacerdote, mesmo conspirando contra o Filho de Deus, por ser uma autoridade constituída por Deus, profetizou ao afirmar que “convém que um homem morra pelo povo, e que não pereça toda a nação” (11:50).

Por sinal, há indícios na obra de que o próprio João tinha algum relacionamento com a família do Sumo Sacerdote. Se o “outro discípulo que estava com Pedro” era o próprio João, ele própria afirma que este “era conhecido do sumo sacerdote…e falou à porteira, levando Pedro para dentro” (18:16). Se de fato isso for verdade (e o capítulo 20, onde sabemos que o outro discípulo é de fato João, tem semelhanças no linguajar com esta passagem), seria uma revelação bombástica!

Há muito o que dizer a respeito, e na Bibliografia indico um livro do Dr. Eli Eyzenberg sobre a judaicidade do Evangelho de João. Por hora, fica o convite a que você releia o Evangelho Segundo João tendo essas informações em mente. Perceba como ele apresenta Jesus, tente perceber as nuances quando o termo “judeu” e “os judeus” aparece e observe como ele próprio se insere na cultura do seu povo quando se refere a termos aramaicos, locais em Jerusalém, festas e costumes. Garanto que um “novo evangelho” vai emergir diante dos seus olhos. E se você for cristão, passará a amá-lo ainda mais.