A partir do século II a.C. as Escrituras hebraicas começaram a ser traduzidas para outras línguas. O que podemos aprender sobre o que criam os judeus do primeiro século a partir destas traduções?
Até o século III a.C., a Tanakh (o que conhecemos hoje como Antigo Testamento), só existia em hebraico e pequenos trechos em aramaico. Porém, a partir deste século, uma tradução da Torá (o Pentateuco de Moisés) para o grego foi produzida em Alexandria, no Egito e, nos séculos posteriores, os demais livros também foram traduzidos, além de outros posteriormente considerados apócrifos, dando origem ao que conhecemos hoje como Septuaginta (LXX). Este período foi marcado pela expansão da língua grega pelo império macedônio e pelos seus sucessores nos séculos antes da ascensão de Roma.
No século I d.C., havia mais judeus na diáspora do que na terra de Israel (Judeia, Samaria e Galiléia), e estes falavam primordialmente o grego. Já os judeus “da terra” falavam o aramaico na vida cotidiana, sobrevivendo o hebraico apenas na liturgia e nas leituras sabáticas da sinagoga. Por isso, essas leituras da Torá e dos Profetas em hebraico eram seguidas de uma preleção em aramaico, explicando o que foi lido. Pelos idos do século II, estas leituras foram postas por escrito, e nasceram os Targumim, traduções da Tanakh em aramaico.
Se por um lado a Septuaginta e os Targumim se tornaram necessárias para suprir a necessidade linguística de um povo em diáspora e que não mais dominava sua linguagem original, elas também deram origem ao que podemos chamar de tradições escriturísticas que revelam um pouco, ou bastante, a compreensão que os judeus das respectivas épocas tinham das Escrituras.
A Tradução Grega (Septuaginta)
Começando pela Septuaginta, até o início do século II ela era bastante respeitada pelos judeus. Tanto que sua origem é envolta em uma narrativa mítica (provavelmente) de que o rei Ptolomeu II do Egito teria encomendado uma tradução da Torá a setenta sábios judeus, os quais realizaram sua tradução de forma independente e exatamente igual, palavra por palavra. Isso demonstra que os judeus tinha esta tradução grega (ao menos a Torá) como divinamente inspirada. Entretanto, quando os cristãos surgiram e começaram a utilizar os textos da LXX para provar que Jesus havia cumprido as profecias e que era o Messias esperado, os rabinos trataram de desmerecê-la e se afastaram dela.
Mas isso suscita um ponto interessante: por que a LXX tornou-se uma tradução “tão cristã” a ponto de os líderes judaicos a abandonarem? E mais: o que ela tinha de diferente da Torá original em hebraico? Até meados do século XX costumava-se responder que a Septuaginta não era uma tradução literal das Escrituras hebraicas, mas uma espécie de paráfrase interpretativa (como veremos que os Targumim são), e de fato, algumas passagens da tradução grega tomam algumas liberdades onde o texto hebraico é complexo. Porém, com a descoberta dos Manuscritos do Mar Morto no deserto da Judeia a partir de 1947, descobriu-se que nos séculos anteriores à Era Cristã existiam textos hebraicos das Escrituras muito próximos da Septuaginta. Ou seja, ela não é apenas uma paráfrase, mas faz parte de uma tradição de manuscritos 400 anos mais antiga que os textos massoréticos, considerados hoje como os melhores manuscritos da Bíblia hebraica.
Mas, voltando à questão do uso cristão da LXX, o que chama a atenção é que o texto que se tornou normativo para o Judaísmo, o Texto Massorético (TM), discorda veemente do texto grego em algumas passagens. Até algum tempo, não tínhamos ainda um tradução completa da Septuaginta em língua portuguesa, mas algumas têm surgido. Entretanto, nem precisamos de uma Bíblia grega completa para percebermos as discordâncias entre o TM e a LXX. Encontramos a tradição da tradução grega da Bíblia Hebraica no Novo Testamento. Todas as citações feitas ali provêm da tradução grega, embora em algumas passagens exista dúvida se é de fato uma citação direta ou uma citação de cabeça imprecisa ou até mesmo uma tradução própria do autor. Fato é que, especialmente pelo fato do NT ter sido escrito em grego, naturalmente as citações da Bíblia Hebraica também estejam em grego, e ainda mais natural que os autores tenham se utilizado da tradução disponível e largamente utilizada em sua época.
Pois bem. Se você tem uma Bíblia com comentários ou referências cruzadas, pode perceber claramente as diferenças entre algumas citações do Antigo Testamento no Novo e a passagem em seu local original no Antigo Testamento. Existem quase trezentas citações diretas do AT no NT, sendo que algumas delas, como uma citação do Salmo 22, encontramos diferenças entre o que diz o texto no AT e o que diz a sua citação no NT. Estas diferenças se devem ao fato de que a tradução grega se utilizou de uma tradição escriturística pré-cristã, enquanto que o Texto Massorético, que só foi produzido cerca de 500 anos depois de Cristo, utilizar uma tradição pós-cristã. Para muitos isso significa que deveríamos confiar mais do texto grego da Septuaginta do que no texto hebraico dos massoretas, e eles não estariam muito errados, ainda mais que hoje também temos os manuscritos hebraicos do Mar Morto dando suporte às leituras gregas. Ao mesmo tempo, parece que os massoretas propositalmente escolheram as leituras “menos cristãs” e por isso o TM se afasta às vezes das citações do AT no NT.
Os Targumim
Menos famosos que a Septuaginta, os Targumim foram traduções aramaicas do Antigo Testamento produzidas nos primeiros séculos da era cristã. Hoje temos preservados pelo menos três principais Targumim antigos: A Torá de Onkelos (há também outras versões como a chama Pseudo-Jonathan), Os Profetas de Jonathan ben Uziel e um compilado incompleto chamado Neofiti. Acredita-se que a criação original destas versões aramaicas tenham surgido na Palestina e Babilônia do século I, dentro das sinagogas, com o objetivo de explicar as Escrituras Hebraicas para o povo. Originalmente não se tinha a intenção de pô-las por escrito, mas no segundo século, alguém teve a ideia e outros o seguiram. O que é de particular interesse nestas traduções é que elas não são apenas traduções, mas em algumas situações, tornam-se paráfrases. Ou seja, ao invés de apenas traduzir do hebraico para o aramaico, o autor interpreta e explica o texto, revelando assim a tradição que ele tinha a respeito daquela passagem.
No final das contas, os Targumim são uma espécie de registro do que era ensinado nas sinagogas judaicas do século I. Que tradições, que interpretações, que ideias circulavam a respeito da Bíblia. Uma delas é de especial interessa para nós, uma vez que revela um ponto de contato com o Novo Testamento. Especialmente no Targum Pseudo-Jonathan, mas também nos demais, percebemos um esforço de eliminar antropomorfismos característicos do texto hebraico. Por exemplo, como os mestres das sinagogas explicavam que o Deus Todo Poderoso desceu à terra para falar com os seres humanos? Como isso seria possível? Ele se levantou do seu trono e desceu, por exemplo, para falar com Abraão? A resposta dos Targumim é: Deus veio através da sua Palavra (Memra, em aramaico). Logo, Adão falava com a Palavra de Deus; Abraão jantou e conversou com a Palavra de Deus, e o pacto estabelecido foi entre eles, e assim por diante. Isso revela que a ideia por trás de João 1 não tem origem na filosofia grega, mas na hermenêutica hebraica!
Então, quando João escreve sobre a Palavra (em grego logos), ele provavelmente tinha mente o seguinte: “No princípio era a Memra. E a Memra estava com Deus, e a Memra era Deus“. Durante muito tempo João foi “acusado” de ser o Evangelho mais estranho, aparentemente incorporando a ideia filosófica grega do Logos, a origem da razão. O que também faz algum sentido até, porém ele extrapola as ideias gregas e acaba se desassociando bastante da filosofia, enquanto, por outro lado, se aproxima bastante da ideia judaica de que a Palavra de Deus é uma entidade a seu serviço e que carrega em si a honra e a glória do Nome divino. Por isso, inclusive, ela é chamada de “Deus” às vezes.
Conclusões
Uma vez que colocamos o Novo Testamento na mesma prateleira dos vários documentos judaico do período do segundo templo, como é o caso dos Apócrifos, da Septuaginta, dos Targumim e, por que não, até mesmo da Mishná, percebemos como eles conversam entre si! Descobrimos de forma mais profunda que para termos uma hermenêutica neotestamentária mais precisa, precisamos olhar para o contexto ao redor da produção do Novo Testamento. As tradições da época, reveladas nas traduções grega e aramaica, são importantíssimas, às vezes cruciais, para entendermos corretamente os que os apóstolos estavam querendo dizer ao escrever tal e tal coisa. Isso vai desde os neologismos criados por Paulo para aludirem à tradução grega do Antigo Testamento, até conceitos profundamente teológicos como o da Palavra de Deus como seu “anjo” interlocutor.