Muito embora nem todos concordem 100% com seus resultados, é um fato bíblico e histórico que em meados do ano 50 da Era Cristã ocorreu um encontro, em Jerusalém, dos Doze apóstolos com diversos líderes da igreja, incluindo Paulo e Barnabé. O que a participação de Pedro neste encontro revela e como a decisão apostólica pode ter impactado a visão do apóstolo a respeito da sua nova vida em Cristo?
Alguns crentes da Judeia chegaram a Antioquia e começaram a ensinar aos gentios convertidos (os quais eram maioria naquela igreja) de que eles precisavam se tornar judeus para que fossem efetivamente salvos. A descrição não deixa claro, mas a presença de fariseus como acusadores no concílio nos leva a crer que foram eles mesmos que disseminaram essa ideia em Antioquia. Embora passe despercebido em meio a tanta informação, mas o livro dos Atos revela que muitos fariseus creram em Jesus! Paulo e Barnabé se opuseram veementemente à posição deles, e, dado a suposta autoridade que aqueles fariseus tinham, os líderes daquela comunidade decidiram que a palavra final deveria vir dos apóstolos.
É interessante notar que nem mesmo estes tinham uma resposta pronta para isso. Até então, apenas judeus haviam crido – sacerdotes e fariseus entre eles – mas agora gentios se juntavam às fileiras da comunidade cristã. Embora os próprios apóstolos tenham dado seu aval para o nascimento da igreja em Antioquia, nenhum deles havia ainda emitido qualquer ordem em relação à “situação dos gentios”. Ao mesmo tempo, percebemos que no seio da autoridade apostólica – a Judeia – havia os defensores de uma “teologia” bem particular: estes achavam que não bastava aos gentios crerem em Jesus como o Senhor Messias, mas também precisavam ser circuncidados e, consequentemente, guardar todos os mandamentos da Lei de Moisés. Em resumo, precisavam se tornar judeus para serem efetivamente salvos.
Depois que o problema foi apresentado, Paulo e Barnabé deram o seu testemunho, assim como Pedro e Tiago falaram em nome dos apóstolos, e o parecer do presbitério foi: a) nenhum gentio deveria ser obrigado a se tornar judeu (ou seja, circuncidar-se); b) as minúcias e costumes da Lei mosaica não deveriam ser impostas aos gentios; c) os gentios deveriam observar regras mínimas que permitissem a comunhão com os judeus (literalmente, para que pudessem se sentar à mesa juntos), além de outras que se adequam ao padrão de santidade exigida por Deus – até porque, a doutrina cristã é total e completamente baseada na Lei e nos Profetas. A partir dessa decisão, Paulo, em especial, passou a divulgar a decisão apostólica por onde quer que passasse.
Escrevendo aos coríntios, Paulo os informa a respeito de um ponto crucial da doutrina que propagava: “Esta é a minha ordem para todas as igrejas: Foi alguém chamado quando já era circuncidado? Não desfaça a sua circuncisão. Foi alguém chamado sendo incircunciso? Não se circuncide.” (1Co 7:17,18). Ou seja, Paulo ensinava que gentios não deveriam (ou precisavam) se tornar judeus, enquanto judeus deveriam continuar a ser judeus, e isso significava, como em todos os casos, continuar a guardar as ordenanças da Lei. Essa conclusão é ratificada quando, escrevendo aos gálatas, ele afirma que qualquer crente gentio que se permitisse ser circuncidado, estaria “obrigado a guardar a Lei” (Gl 5:3).
Sendo assim, a partir do ano 50, aproximadamente, a igreja cristã apostólica em toda parte passou a adotar a seguinte postura: os judeus crentes permaneceriam com suas tradições, incluindo aí as obrigações e rituais relacionados ao Templo em Jerusalém, enquanto aos gentios bastaria observar a doutrina apostólica, que em última análise, era uma versão menos rígida da religião judaica (alguns observam aqui que a decisão apostólica se parece muito com as assim chamadas Sete Leis dos Filhos de Noé, que segundo o entendimento rabínico, são as únicas leis que os gentios precisam guardar). Além disso, ficou decidido que os Doze – ou pelo menos Pedro, João e Tiago – se dedicariam a evangelizar os judeus, enquanto Paulo e sua trupe investiria nos gentios (Gl 2:7-9). Aliás, o próprio Paulo continuou a guardar suas tradições judaicas, fazendo votos, levando ofertas ao templo e, para o espanto de muitos, considerar-se um fariseu convertido, ao menos até ser levado preso a Roma (At 23:6). Mas, o que será que Pedro pensava a esse respeito?
Durante o concílio, Pedro faz uma afirmação forte a respeito da Lei. Ele diz: “Por que vocês querem tentar a Deus, pondo sobre o pescoço dos discípulos um jugo que nem os nossos pais puderam suportar, nem nós? Mas cremos que somos salvos pela graça do Senhor Jesus, assim como eles.” (At 15:10,11). Ou seja, a opinião de Pedro era a de que a Lei, com todas as suas prescrições, ordenanças e preceitos, era um jugo tão pesado que nem mesmo eles, os judeus, conseguiam suportar! E antes que você julgue Pedro (ou a mim), saiba que os sábios judeus do primeiro século já falavam algo semelhante. Eles diziam que a Torá é um jugo, embora seja um jugo que valia a pena carregar. Inclusive, Pedro não está se recusando, num primeiro momento, a carregar esse jugo, mas ele está sendo franco em afirmar que é um jugo pesado – e por sinal, ninguém discorda dele, nem mesmo Tiago.
Agora aqui vem o fato mais intrigante e que, a meu ver, é um dos mais ignorados do Novo Testamento. Na continuação de sua argumentação aos crentes da Galácia a respeito da sua vida e experiência, Paulo comenta sobre um fato desagradável ocorrido em Antioquia. Ele conta que, certa feita, já depois da pacificadora decisão apostólica sobre os gentios, o apóstolo Pedro fez uma visita àquela igreja. Só posso imaginar os ótimos momentos que ele passou ali na companhia de irmãos que o valorizavam como uma das colunas da comunidade cristã, dentre eles o próprio Paulo. Pedro, o judeu, estava tão à vontade ali na companhia daquela igreja que, relata Paulo, ele se sentou tranquilamente com aqueles não judeus para partilhar a refeição do ágape dominical.
Ora, Pedro, conforme seu próprio relato, foi o primeiro a compreender em primeira mão que Deus havia aberto a porta da salvação aos gentios e que Ele, por meio do sacrifício de Cristo, os aceitou. Ele foi, inclusive, o primeiro no concílio a dar seu testemunho e sua opinião de que não se deveria exigir mais do que a fé aos gentios. Qual não foi a surpresa de Paulo quando, a partir do momento que alguns irmãos da Judéia chegaram a Antioquia, Pedro de repente mudou sua atitude! Ele não mais se sentava com os irmãos gentios, possivelmente por medo do que aqueles irmãos “vindos da parte de Tiago” poderiam falar dele. O irônico da situação é que instruções já haviam sido dadas a esse respeito justamente para que judeus e gentios se sentassem na mesma mesa, e de fato o próprio Pedro já havia precisado se defender da acusação de que havia entrado na casa de gentios e comido com eles! Isso nos faz perceber que nossos heróis também são pessoas de carne e osso e, portanto, têm falhas e imperfeições como nós.
Diante desta demonstração de hipocrisia, Paulo irou-se e repreendeu Pedro publicamente. Tendo a achar que a ira de Paulo se deveu mais ao sentimento de inferioridade que esta atitude provocou em seus irmãos antioquitas, ainda mais que outros judeus o seguiram nesta atitude, até mesmo Barnabé. Então, ao repreendê-lo, Paulo disse: “Se você, que é judeu, vive como gentio e não como judeu, por que quer obrigar os gentios a viverem como judeus?” (Gl 2:14). Esta passagem é reveladora, pois a fala de Paulo não é uma acusação, mas uma constatação! Pedro já não viva como um judeu, mas como um gentio! Em que sentido? Será que Pedro havia desfeito sua circuncisão, ou de repente tornou-se um pagão comer de carne de porco?! Nada disso. A explicação mais plausível pode ser encontrada nos ensinamentos do próprio Paulo a respeito da Lei.
Paulo insistiu com algumas de suas congregações a não se deixarem levar pela ilusão de que a Lei tinha algum poder sobre elas. Nisso reside, inclusive, alguns mal entendidos sobre ele. Desde aqueles dias ele já era acusado de ensinar judeus “a apostatarem de Moisés, dizendo-lhes que não devem circuncidar os filhos, nem andar segundo os costumes da Lei.” (At 21:21), coisa que ele jamais fez. Entretanto, ele era enfático em afirmar aos gentios de que eles não precisavam da Lei de Moisés e nem da circuncisão, pois Cristo bastava. Entretanto, ele também afirmou o seguinte a respeito de si mesmo: “…estou morto para a Lei, para viver para Deus” (Gl 2:19); “para os que estão debaixo da Lei, como se eu estivesse debaixo da Lei…” (1Co 9:20); “Pecaremos porque nós não estamos debaixo da Lei, mas debaixo da graça?” (Rm 6:15). Portanto, por mais que não incitasse nenhum judeu a abandonar seus costumes ou a se desviarem dos preceitos de Moisés, Paulo tinha total compreensão de que a Lei não tinha mais nenhum poder sobre ele próprio, e acredito que Pedro chegou à mesma conclusão.
Veja que isso não significa que Pedro ou Paulo tenham, necessariamente, abandonado a dieta restritiva, ou a guarda dos sábados ou qualquer outro costume judaico; na verdade, temos indícios do contrário, especialmente em relação a Paulo. Mas ao mesmo tempo, a compreensão deles de que a vinda do Messias havia mudado tudo, inclusive a relação dos próprios judeus com a Lei, fez com que eles passassem a viver uma vida “mais leve”, em liberdade, se permitindo, por exemplo, comer com gentios sem se condenarem por isso. No caso de Paulo, é minha opinião que, mesmo pensando assim, ele continuou a viver sua fé como um “bom judeu”, especialmente para que sua missão entre os gentios não fosse difamada. Se vivendo como judeu entre os gentios, ele foi acusado de desviar judeus, imagine se vivesse como um gentio!