Conforme nossa compreensão de que o Judaísmo dos dias de Jesus era plural, até mesmo fragmentado, avança, inevitavelmente começamos a repensar a própria religião de Jesus. Em que tradição ele se encaixava? Até que ponto podemos afirmar que Jesus praticava o Judaísmo? E que impacto isso tem em nossa compreensão dele e de sua doutrina?
Parece estranho, mas ainda existem muitas pessoas que acreditam que Jesus era cristão. Chega a ser engraçado, mas é um tanto trágico. Na verdade, nenhum fundador de nenhuma religião pertencia à sua religião. Parece contraditório, mas como Buda seria budista, se ele ainda estava formulando sua doutrina? Ou como Moisés poderia ser judeu, se o Judaísmo só surgiu como religião depois do cativeiro babilônico? Portanto, se Jesus não poderia ser cristão, o que ele era?
A resposta mais óbvia é: Jesus era judeu. Mas, antes que possamos nos aprofundar nessa verdade, creio ser necessário, antes, definir melhor o termo “judeu”. Afinal, a que se refere quando alguém é chamado de de judeu?
O que é um judeu?
Mais uma vez, a resposta parece óbvia, mas não é. O termo hebraico yehudi (ioudaioi em grego) é dúbio por natureza, podendo ser traduzido em português como “judeu” ou “judaíta”. A palavra se origina em Judá, o filtro de Jacó. Então, num primeiro momento, yehudi é todo o que pertencia à tribo de Judá. Mais tarde, com a divisão de Israel em dois reinos, o sul leva o nome de Reino de Judá (embora não fizesse parte dele apenas descendentes da tribo de Judá. Um pouco mais tarde, pelo tempo da dominação persa, Mordecai, que pertencia à tribo de Benjamim, é chamado de “judeu”, e daí pra frente todos os que retornaram do exílio babilônico levam essa alcunha.
Por outro lado, com o estabelecimento do Judaísmo como uma religião bem definida, passou-se a associar o nome “judeu” a todos os praticantes dessa religião. E é aqui que a confusão começa de verdade, porque os historiadores não têm muita certeza de quando os termos se confundiram. Por exemplo, quando João cita “os judeus” não temos 100% de certeza a que ele se refere: se aos praticantes do Judaísmo, se aos habitantes da Judeia (em contraste à Galileia e Samaria) ou se a ambos! Lembrando que estamos falando apenas dos tempos antigos, até meados do segundo século, pois a partir daí, o termo “judeu” ganhou definições mais complexas, ao ponto que hoje, a pergunta “quem é judeu” é bem mais difícil de ser respondida.
Entretanto, mesmo em meio a esse tipo de incerteza, é possível definirmos em linhas gerais o que significava ser um judeu nos dias de Jesus. A autora Amy-Jill Levine, em seu livro Misunderstood Jew, define que Jesus era um “judeu” por causa de certos comportamentos: “(…) a circuncisão, usar o tzitzit (franjas na túnica), seguir as leis dietéticas, chamar Deus de ‘pai’, frequentar a sinagoga, ler a Torá e os Profetas, ter a consciência de não ser nem um gentio nem um samaritano, honrar o Shabat e celebrar a Páscoa”. Em suma, não havia distinção entre pertencer a um povo e praticar as tradições deste povo. Esta distinção é moderna, mas naquele tempo, dizer que alguém era ioudaios significava pertencer ao povo judeu, ao mesmo tempo que significava praticar as leis e tradições do povo judeu. Sendo assim, Jesus era “judeu” quatro vezes: pertencia ao povo judeu (como descendentes de Jacó), era da tribo de Judá, nascido na Judeia e praticante da religião judaica!
O Judaísmo de Jesus
Cabe agora nos aprofundarmos mais nesta última afirmação – chocante talvez para alguns: até que ponto Jesus praticava a religião judaica. Isso se torna necessário, ainda mais quando vemos, especialmente no Evangelho de João, os embates entre Jesus e “os judeus”. Se ele antagonizava tanto com eles, como podia pertencer ao mesmo grupo deles? Mas é justamente nas discussões entre Jesus e os fariseus que a sua forma de Judaísmo se sobressai!
Como vimos anteriormente, o Judaísmo do primeiro século não era uma religião homogênea, mas plural. Então, apesar de todo judeu seguir basicamente as mesmas tradições citadas acima, a forma como cada grupo entendia como deveria vivenciar sua fé na prática variava muito. Dito de outra forma, os judeus do período do segundo templo (que abrange cerca de 3 séculos, não apenas o tempo de Jesus) estavam mais preocupados com a ortopraxia (a forma correta de praticar os mandamentos) do que com a ortodoxia (a forma correta de interpretar os mandamentos). Esta diferença fez com que, ao longo desse período, não houvesse um “judaísmo oficial” a ser seguido, ao invés, diferentes grupos definiram para si a forma “certa” de obedecer a Deus, e ser o seu Israel.
O que percebemos claramente em Jesus, se nos permitimos ler os Evangelhos dentro de um contexto estritamente judaico, é que Jesus também tinha a sua visão de qual era a forma correta de obedecer a Deus e ser o seu verdadeiro Israel. Os embates entre ele e os fariseus, principalmente, demonstram o quão próximos eles estavam em termos de doutrina, a tal ponto que alguns poucos estudiosos acreditam que Jesus era um fariseu. Não pretendo tratar esse tema aqui, mas não existem indícios suficientes pra essa afirmação, existindo, na verdade, muitos indícios contrários. Entretanto, uma vez que os fariseus, dentre as diferentes “denominações” judaicas, eram os que mais se dedicavam ao estudo e interpretação das Escrituras – ao ponto que, ao que tudo indica, a maioria dos escribas era fariseu – é natural que Jesus questione mais as suas interpretações do que as de outros.
Então, uma vez que Jesus de fato pertencia ao contexto judaico do primeiro século, sendo um fiel praticante dos mandamentos (como ele mesmo afirma em Mateus 5:17), até que ponto ele se alinhava com fariseus, essênios ou saduceus? Talvez a melhor resposta seria dizer que, em termos de doutrina e hermenêutica, ele se alinhava bastante com fariseus e essênios, enquanto que em termos de ortopraxia, se distanciava bastante de todos eles. E isso é uma conclusão ao mesmo tempo interessante e decepcionante, uma vez que percebemos o quão próximos da verdade revelada do próprio Messias os judeus estavam, e no entanto, ainda assim, não o reconheceram como tal.
Ortopraxia e hermenêutica
Em termos de prática religiosa, Jesus cumpriu basicamente tudo o que Amy-Jill Levine já declarou: Jesus nasceu de pais judeus, na terra de Israel, foi circuncidado ao oitavo dia, tendo o sacrifício do primogênito sido ofertado no templo de Jerusalém; Jesus estou a Lei e os Profetas (como exatamente, não sabemos), demonstrando incrível aptidão neles desde os doze anos de idade; cresceu obedecendo aos mandamentos, fazendo as peregrinações a Jerusalém e quiçá seguindo algumas tradições dos anciãos (estes últimos pontos inferimos pelo fato de ninguém jamais pôr em cheque a autoridade de Jesus para ensinar pelo fato de desobedecer algum mandamento ou praticar algo contrário à Lei); e, enquanto ele próprio não concordasse com tudo o que os fariseus ensinavam, corroborou a halacá deles fariseus, pedindo que o povo a obedecesse (cf. Mateus 23:2).
Em relação à interpretação bíblica de Jesus, percebe-se pelos Evangelhos que em alguns pontos ele discordou e outros concordou com seus contemporâneos, especialmente os fariseus. Uma leitura cuidadosa revela que, em geral, o ponto de discordância entre Jesus e os fariseus dizia respeito à tradição oral deles, ou como Mateus chama, “a tradição dos antigos”. Jesus critica algumas tradições como a de odiar o inimigo ou a respeito do divórcio; ele critica a prática do Corban em detrimento do auxílio aos pais; ele critica a ideia de que comer sem lavar as mãos traz contaminação ritual, dentre outros pontos. Claro, ele também criticou duramente a hipocrisia em que muitos fariseus viviam, mas isso não tem a ver diretamente com doutrina (talvez com a ortopraxia).
Quanto aos saduceus é complicado dizer, pois sabemos muito pouco sobre seu sistema doutrinário. A priori, Jesus discordava deles muito mais que dos fariseus. E em relação aos essênios, embora os Evangelhos não registrem nenhuma interação entre eles e Jesus, hoje sabemos em que eles criam e como interpretavam as Escrituras, então podemos fazer uma comparação tardia. À primeira vista, parece que os essênios concordariam em grande parte não somente com a doutrina de Jesus, mas também com seu ministério messiânico. É claro que, como a maioria esmagadora dos judeus da época, eles também tinham expectativas equivocadas a respeito do Messias, mas certas passagens dos Manuscritos do Mar Morto chegam a se parecer com passagens do Novo Testamento. Não à toa, ainda existem alguns que acreditam que Jesus era essênio, ou que os essênios tenham se convertido a Cristo. Nada disso porém pode ser comprovado.
Um último ponto que vale a pena ser comentado é a posição hermenêutica de Jesus frente às escolas de Hilel e Shammai. Ambos foram mestre fariseus contemporâneos de Jesus e que fundaram escolas de interpretação das Escrituras. Hilel (avô de Gamaliel, mestre de Paulo) era tido como mais flexível em suas interpretações, enquanto Shammai era mais rígido. Muitos estudiosos acabam classificando a doutrina de Jesus mais para Hilel que Shammai, mas isso não é verdade para todos os pontos, uma vez que em alguns pontos ou ele concorda mais com Shammai ou vai na contramão de ambos. Logo, essa comparação não tem nenhum efeito real para determinar a que escola de pensamento Jesus pertencia.
A “religião” de Jesus
A maioria dos estudiosos do Judaísmo do segundo templo concorda que a pluralidade de interpretações e visões de mundo encontradas nas diferentes “seitas” judaicas tinha em comum um ponto: todos eles achavam que era o “verdadeiro Israel”, e portanto, praticavam a forma mais pura da fé legada ao povo de Deus. Olhando por esse prisma, Jesus também não foge à regra.
Em primeiro lugar, o próprio Jesus afirmava inequivocamente que tudo o que ensinava vinha do Pai, de Deus. Portanto, sua interpretação das Escrituras Sagradas não era apenas opinativa, era a interpretação correta. Ao mesmo tempo, conforme vemos mais tarde também nos escritos apostólicos, Jesus considerava o seu grupo de seguidores como o verdadeiro Israel – na verdade, ele foi além, chamando-o de Reino dos Céus. Analisando os ensinos de Cristo sob esta ótica, percebemos que a sua religião – se é que podemos chamar assim – era a mais pura expressão da fé revelada nas Escrituras.
Se não, vejamos: Jesus ratificou várias afirmações e histórias das Escrituras hebraicas; ele tentou explicar o que algumas passagens queriam dizer; aprofundou ainda mais o sentido de alguns mandamentos; deixou claro que o Deus revelado ali era seu Pai; afirmou que as Escrituras falavam sobre ele próprio, além de se considerar o cumprimento de muitas profecias; condenou fariseus por anularem mandamentos claros com mandamentos criados por eles mesmos; refutou interpretações farisaicas que iam além do que estava escrito; ratificou a importância de obedecer aos mandamentos; por fim, ele afirmou que sua missão era dar cumprimento a tudo o que as Escrituras haviam profetizado.
Estes são alguns exemplos descritos nos Evangelhos que nos dão uma ideia de que forma de religião e ortopraxia Jesus tinha. Anacronicamente, poderíamos dizer que Jesus defendia o sola scriptura (a fé deve se basear somente nas Escrituras), enquanto sua interpretação delas fortalecia ainda mais os mandamentos, ao invés de enfraquecê-los. Sua chamada era para uma vida de compromisso com a sinceridade que Deus esperava dos que os praticavam, deixando claro que a coisa que Deus mais odeia é um hipócrita. Em resumo, Jesus se apresentou como um digno profeta da Antiga Aliança, denunciado o erro, chamando o povo ao arrependimento e repassando a este a mensagem que o Deus deles queria que ouvissem. Sem dúvida alguma, à parte de fariseus, essênios ou outros grupos da época, Jesus vivia a religião de Abraão, Moisés, Davi e dos profetas.
A verdade final, a meu ver, é que a doutrina de Jesus era só dele. Obviamente, o material do qual se alimentavam os saduceus, os essênios e os fariseus – fossem da escola de Hilel ou da de Shammai – era a Torá e os Profetas. Logo, é natural que Jesus, eventualmente, concorde com um ou outro grupo. Entretanto, tanto suas concordâncias quanto suas divergências apontam para o que é mais importante: Jesus bebia da fonte pura das Escrituras, não inventando nada propriamente novo, no máximo trazendo um outro lado exegético que os demais não tinham concluído. Como um crente, creio que a sua hermenêutica era perfeita, divina. O ensino de Jesus provinha diretamente do Pai, que queria que o seu povo vivesse a Lei e os Profetas da forma correta. Minha conclusão é que, como já afirmou um famoso ator judeu, Jesus foi “o melhor judeu que já existiu”.