A herança judaica da fé cristã

Jesus, a Lei e os Profetas

Como vimos anteriormente, Jesus afirmou que seu objetivo não era abolir a Lei ou os Profetas, mas sim cumpri-los. O que isso realmente significa, e como afirmações como essa revelam o quão judaica era a sua doutrina?

A afirmação do Rabi contida em Mateus 5:17 até hoje é mal compreendida por muitos. Para termos contexto, reproduzo aqui a passagem inteira:

“Não pensem que vim destruir a Torá ou os Profetas; não vim destruir, mas dar cumprimento. Pois verdadeiramente lhes digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou uma serifa jamais passará da Torá, até que tudo aconteça! Aquele, pois, que desatar o menor destes mandamentos, e ensinar isso aos outros, será chamado menor no Reino dos Céus. Aquele, porém, que observar e ensinar, esse será chamado grande no Reino dos Céus. Pois lhes digo que, se a justiça de vocês não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrarão no Reino dos Céus!”

Mt 5:17-20

Uma quantidade razoável de pessoas que conheço interpreta esta passagem, especialmente o versículo 17, da seguinte maneira: Jesus realmente não veio para simplesmente revogar a Lei mosaica; ele veio para cumpri-la por nós, para que sejamos livres do cumprimento dela. Não pretendo aqui me deter neste assunto, mas aproveito para tentar elucidar melhor o que o Senhor quis dizer. O verbo “destruir” (katalysai), usado por Jesus, significa literalmente “afrouxar”, assim como se afrouxa um cinto, ou um fardo atado a um animal quando se chega ao destino. Em outras palavras, Jesus estava dizendo que não veio tornar as Escrituras mais fáceis de cumprir (torna-las mais frouxas), ou enfraquecê-las, e é particularmente interessante que esta afirmação venha antes das antíteses que se seguem a partir do versículo 21.

Jesus não veio revogar, abolir, destruir ou afrouxar os mandamentos de Deus encontrados nas Escrituras hebraicas, ao contrário, ele veio para eleva-los, confirma-los, aprofunda-los ainda mais, como o restante do capítulo 5 demonstra claramente. Ele chega ao ponto de afirmar que nem mesmo a menor letra ou sequer um pequeno traço decorativo de uma delas será ignorado, mas tudo o que foi profetizado, será cumprido. É a isso que se refere o verbo “cumprir” (plerosai). Embora ele possa ser entendido como “realizar algo”, o sentido claramente determinado pelo contexto é o de “tornar completo”, ou mais propriamente “dar cumprimento”. Jesus veio para dar cumprimento a tudo o que está escrito nas Escrituras Sagradas.

A relação de Jesus com as Escrituras

Já entendemos que, por “Lei e Profetas”, o que Jesus quer dizer é “todas as Escrituras do Antigo Testamento” (que pra ele já eram antigas, mas não velhas). Vejamos então que importância ele dava a elas no seu ministério. Isso é importante até para compreendermos se o que Jesus pregava e ensinava realmente tinha base bíblica, ou se ele estava fazendo inovações (talvez até estranhas ao Judaísmo de então).

Em primeiro lugar, Jesus cita amplamente passagens das Escrituras hebraicas, inclusive ratificando histórias consideradas como mito por muitos, como a de Jonas e a criação de Adão. Dos 39 livros, ele fez citações de 24. Como já era costumeiro entre os escribas e mestres da época, ele se utilizava de passagens e aglutinações de passagens para provar algum ponto. A verdade é que Jesus não disse praticamente nada que não possa ser encontrado nas Escrituras ou que possa ser inferido delas.

Pode até parecer, a princípio, que esta afirmação enfraquece a doutrina de Jesus, afinal ele veio estabelecer uma Nova Aliança, então “a velha não interessa mais”. Porém, é justamente o contrário! Se Jesus é de fato o Messias, como ele poderia trazer uma mensagem diferente de outros mensageiros de Deus, como Moisés, Davi ou Isaías? Seu ensino precisava ser consistente com o que já havia sido estabelecido na Torá, nos Profetas e nos Escritos. Lembrando que Jesus não foi enviado a pregar a gentios, apenas “às ovelhas perdidas da casa de Israel” – ou seja, aos judeus. Então, até mesmo suas ações mais desafiadoras precisavam estar embasadas nas revelações anteriores.

A hermenêutica de Jesus

É difícil falar em hermenêutica ou exegese no que se refere a Jesus, uma vez que não fica muito aparente seu uso de qualquer método de seu tempo. Mas, podemos avaliar que tipo de modelo interpretativo ele utilizava em suas aulas. Primeiro, é bom esclarecer que, como já foi dito anteriormente, os judeus se preocupavam mais com a prática da fé do que com a doutrina. Jesus seguiu mais ou menos essa linha, dando mais ênfase ao “como viver” do que ao “como interpretar”. Diante disso, percebemos que ele dava total crédito ao que estava escrito, considerando as Escrituras como revelação divina.

A forma como Jesus ensinava surpreendeu seus ouvintes. “Ele as ensina como quem tem autoridade” deve ser compreendido como “ele fala como se a palavra final fosse sua”. Os rabinos da época, e também das épocas posteriores, sempre se utilizavam de uma fórmula mais ou menos assim: “o rabino tal, que foi o mestre do meu mestre, ensinava assim e assim”; ou seja, a autoridade era transferida para um mestre anterior, que gozava de prestígio ou simplesmente era considerado como um grande sábio. Jesus usava a fórmula: “Ouviram o que foi dito? Eu porém lhes digo…”, trazendo a autoridade da interpretação para si. Mas mesmo assim, a forma como ele apresentava essas interpretações faziam muito sentido, pois claramente reforçavam o mandamento, ao invés de enfraquecê-lo ou alterá-lo de algum modo.

Podemos dizer, então, que o método exegético de Cristo era semelhante ao dos profetas antigos. Era algo de caráter revelatório, mais do que interpretativo. Sua missão não era a de aplicar um método hermenêutico “correto”, mas ao invés, revelar o que Deus quis dizer quando ordenou isso ou aquilo ao seu povo. Talvez algum acadêmico mais capaz do que eu possa revelar alguma semelhança entre os métodos de Jesus e Hilel, por exemplo, ou extrair dos Evangelhos exemplos claros da aplicação de algum método hermenêutico usado por Jesus. Me atenho a reconhecer que toda a doutrina de Cristo tem por objetivo levar seus discípulos a obedecerem a Deus “em espírito e em verdade”.

Portanto, está claro nos Evangelhos que a base de toda a doutrina cristã são as Escrituras da Antiga Aliança. É como se cada parte da revelação bíblica fosse usada como fundamento para a próxima: primeiro as alianças pré-sinaíticas, depois sobre elas a aliança do Sinai; em seguida, edificadas sobre elas vieram as mensagens proféticas, e edificada sobre ambas, veio a doutrina de Jesus, num ciclo virtuoso de complementação. Por fim, a doutrina apostólica se assenta sobre uma longa tradição que remonta desde Abraão (ou antes) até Jesus. Em capítulos posteriores veremos que muitas das doutrinas mais revolucionárias de Jesus e dos apóstolos, têm uma base sólida tanto nos escritos de Moisés, quanto nos dos profetas.