Conhecemos a história. Um jovem judeu, habitante da região da Galiléia, começou a pregar entre os seus cerca de quarenta anos antes da destruição do templo de Jerusalém. Ele foi reconhecido como o Messias pelos seus discípulos, foi morto por um conluio entre as autoridades judaicas e o governador romano Pôncio Pilatos, ressuscitou ao terceiro dia e a partir disto seus seguidores espalharam sua Boa Nova por todo o mundo. Hoje a religião cristã é a maior do mundo.
Entretanto, muitas vezes nos esquecemos do óbvio. Jesus era judeu. Cresceu como um judeu. Foi educado como um judeu. Discutiu com judeus. Dizia que o Deus dos judeus era o seu Pai. Usava extensivamente as Escrituras judaicas, e afirmava que elas falavam dele. Seus primeiros discípulos foram judeus, assim como todos os seus apóstolos. Até mesmo o maior propagador de sua mensagem, Saulo de Tarso, era um judeu pertencente à seita dos fariseus. Por que então raramente compreendemos Jesus em seu contexto original, judaico?
A questão hermenêutica
Como é costumeiro afirmar, somos separados da mensagem bíblica original por vários distanciamentos. Pra começar estamos separados pelo tempo. Os primeiros “livros” da Bíblia foram escritos por volta do século XIII a.C. (para alguns século VIII a.C.), enquanto que os últimos, no final do primeiro século da Era Cristã. Ou seja, existe uma distância temporal entre nós e a Bíblia de, no mínimo, 1.900 anos! Mas não para por aí. Existe também uma distância linguística, pois a Bíblia não escrita em português (ou inglês, ou espanhol, o que ainda nos ajudaria), mas em hebraico antigo, aramaico e grego koinê. Nenhuma dessas línguas é falada mais em nossos dias, então além da dificuldade em aprendê-las, temos que fazê-lo com acadêmicos que passaram anos estudando elas. E a lista só cresce. Apenas para citar mais um distanciamento, e este é um dos mais complexos, é o cultural. A cultura da Bíblia é uma cultura antiga, oriental e semita. Nada muito próximo da nossa cultura moderna, ocidental e européia (que por sua vez, tem origem na cultura grega).
Os distanciamentos temporais e linguísticos, desde pelo menos um século, tem sido suprida graças a muitos esforços arqueológicos e filológicos. Hoje temos um melhor conhecimento dos povos e da época em que as histórias da Bíblia ocorreram. Também, como citado acima, muitos se dedicaram a estudar as “línguas mortas” do passado, e nos legar os significados das palavras. Diga-se de passagem, a continuidade da existência do povo judeu muito contribuiu para que pudéssemos compreender melhor a linguagem bíblica, mas tratarei disso em outro momento. Em relação ao entendimento da cultura, pelo menos nos séculos que antecederam o século XX, somente parcialmente conseguimos avançar na compreensão da cultura semita presente nos dias de Cristo. É interessante que até mesmo os judeus daquele tempo tivessem um pouco de dificuldade de praticar a hermenêutica dos livros da Bíblia Hebraica (o Antigo Testamento), uma vez que também pra eles a cultura bíblica estava distante uns mil anos, pelo menos!
A Exegese da fé cristã
Mas se por um lado hoje compreendemos melhor muito do que vivia e pensava o povo hebreu dos séculos antes da Era Cristã, em se tratando dos tempos, da vida e dos ensinamentos de Cristo, por muito tempo tivemos deles um olhar muito ocidental e “grego”. Em especial a teologia cristã se travestiu de filosofia grega e passou a estudar Jesus sob uma ótica muito ocidental. Por causa disso, muito do que Jesus ensinou por vezes nos parece algo difícil de decifrar, assim como algumas de suas atitudes e dos seus apóstolos. Isso ocorre por um motivo muito simples: estamos lendo o Novo Testamento com um olhar ocidental e grego, não com um olhar oriental e semita. Como disse lá em cima, sabemos que toda a vida de Jesus girou em torno do Judaísmo palestino do século I, mas raramente lemos os Evangelhos, por exemplo, com isso em mente.
Vamos pegar um exemplo prático. Jesus diz, em Mateus 6:22,23, que “se os seus olhos forem bons, todo o seu corpo será cheio de luz; se, porém, os seus olhos forem maus, todo o seu corpo estará em trevas”. Interpretar isso é relativamente simples, pois embora não usemos corriqueiramente estes termos, entendemos que se alguém tem um olhar bondoso, sem malícia, etc, estará olhando da forma que agrada a Deus. Por outro lado, um “olho mau” seria alguém que cobiça, cheio de malícia e maldade. Parece simples. Mas se olharmos o contexto onde esta passagem está situada, Jesus não está falando disso, mas sim sobre acumular tesouros no Céu e não servir às riquezas. Ou seja, o contexto é sobre o uso do dinheiro! O que “olho bom” e “olho mau” tem a ver com isso? Tem a ver que estas são expressões idiomáticas judaicas, que significam, respectivamente, “ser generoso” e “ser avarento”. Como poderíamos realmente compreender estas palavras se não conseguirmos situar Jesus em sua própria cultura, língua e tempo?
Este é um pequeno exemplo para ilustrar como é importante compreender o contexto histórico e cultural a que Jesus pertencia. Na verdade, dentre os possíveis métodos de interpretar a Bíblia, o mais preciso e com maiores chances de termos o sentido original proposto pelo autor é o método histórico-gramatical. Este método, como define Russel Shedd, “se baseia na análise do estilo gramatical de uma passagem e seu contexto cultural, histórico e literário”. Em outras palavras: precisamos compreender, da melhor forma possível, a cultura, a história e a linguagem do autor.
Por que conhecer o contexto judaico do Novo Testamento
Diante do que foi exposto, fica claro que precisamos situar Jesus em seu contexto cultural e linguístico, de modo a melhor compreender sua mensagem, suas ações e ter uma dimensão extra de entendimento das Escrituras cristãs. Perceba que isso não tem nada a ver com judaização da igreja, ou algo do tipo. O fato de aceitarmos a judaicidade de Jesus e seus discípulos não judaiza a igreja, apenas reconhece um fato inegável! É bem verdade que em nossos dias muitos movimentos têm surgido, propondo um “retorno às origens”, mas que, no final das contas, é a mesma velha tentativa de judaizar gentios, exigindo que se submetam às tradições e rituais do Judaísmo. Nada do que dissemos aqui defende isso. Simplesmente vamos analisar alguns pontos que nos ajudarão a compreender melhor o Novo Testamento (quiçá também o Antigo) e a mensagem original da fé cristã. Na minha opinião, “retornar às origens” é isso: compreender melhor a mensagem do Senhor Jesus e vivê-la da forma mais intensa possível.
Antes de finalizar esta introdução, queria destacar que é um tanto fácil encontrar livros, artigos e websites sobre este assunto na literatura estrangeira. Há alguns autores em língua inglesa, dos quais bebi muito, como David Flusser, Lois Tverberg, Michael Brown e Eli Lizorkin-Eyzenberg. Mas infelizmente em língua portuguesa o material é escasso, motivo pelo qual estou me dedicando a passar um pouco deste conhecimento adiante. Devo muito a estes homens e mulheres de Deus, dentre os quais alguns foram pioneiros no estudo do contexto judaico da fé cristã.
Ao final deste Web Book incluirei uma pequena bibliografia com as obras a que tivesse acesso sobre o assunto ou relacionado a ele. Novamente, infelizmente a lista de livros em português é ínfima, mas se ler em inglês não for uma dificuldade, recomendo a leitura de cada um deles. Em especial, sou muito grato pela Israel Institute of Biblical Studies por ter disponibilizado o curso “O Contexto Judaico no Novo Testamento”, do Dr. Eli, em língua portuguesa. Muito do que escrevo aqui, fui primeiro introduzido neste curso, e por isso recomendo a qualquer um que deseje uma introdução poderosa sobre o tema.
Como ler este Web Book
A partir daqui você terá outros artigos que desenvolverão esta ideia. Logo abaixo você terá links para lê-los numa sequência, e esta é a minha recomendação. Você também pode voltar à página inicial do Web Book e de lá partir para os próximos artigos. Porém, se decidir ler fora de ordem também é possível, embora possa ocorrer de um assunto ou outro ter sido iniciado em um post anterior. Mas fica a seu critério.
Espero que este conhecimento lhe proporcione um novo olhar sobre as Escrituras, um olhar mais curioso, com mais novidades, e que este olhar expanda os horizontes da sua fé e te faça ir mais fundo na graça e no conhecimento de nosso Senhor Jesus, o Filho de Deus, o Messias de Israel.