Diferente do templo, a sinagoga judaica era um local exclusivo para o estudo das Escrituras e a vida em comunidade, com uma liturgia própria. Que semelhanças há, se alguma, entre a sinagoga e o culto cristão? Será que a organização apostólica das igrejas sofreu alguma influência da sinagoga judaica?
A sinagoga surgiu no contexto do exílio babilônico, quando os judeus já não tinham mais um templo para adorar, e estavam distantes de sua terra natal. É possível que a situação descrita no capítulo 8 do livro de Neemias seja a semente do que depois se oficializou como o serviço sabático da sinagoga. Na passagem, Esdras lê a Torá publicamente em hebraico de um púlpito, e posteriormente os sacerdotes explicam ao povo, em aramaico, o significado do texto. Basicamente era esta a funcionalidade da sinagoga: a leitura pública da Lei (observe o comentário de Tiago em Atos 15:21).
Com o estabelecimento da sinagoga como uma instituição judaica pós-exílica, elas se espalharam pela Diáspora, tendo como prerrogativa básica o quórum mínimo de dez famílias reunidas (ou seja, minimamente 20 membros iniciais). O nome sinagoga provém do termo grego synagoguē que significa “congregação”. Além de um espaço para oração, leitura e estudo das Escrituras, a sinagoga também acabou por se tornar um centro comunitário judaico, especialmente para os que vivam fora da terra de Israel. Era lá que se celebravam casamentos e contratos, a alfabetização das crianças e também a aplicação de penas, como açoites.
A liturgia da sinagoga
Em algum momento provavelmente antes do primeiro século da Era Cristã, uma liturgia básica foi estabelecida, embora não tenhamos um documento que ateste claramente a forma comum dos serviços. De forma fascinante, porém, os documentos mais antigos a atestarem de maneira aproximada como funcionava o culto na sinagoga são os Evangelhos. Em especial a passagem de Lucas 4, que descreve Jesus participando de um serviço em Nazaré, nos dá as indicações básicas que posteriormente foram complementadas pela Mishná. As reuniões sabáticas começavam com orações, normalmente pré-definidas, não espontâneas, como ocorre em igrejas de tradição mas antiga, como a Romana e a Anglicana. O ápice dessas orações era a recitação da Shemá (Dt 6:4-9). Em seguida, algumas pessoas da congregação eram chamadas para realizar as leituras da Torá (o Pentateuco) e outras dos Profetas (que em geral complementam a leitura da Torá, chamadas de haftará). Nos tempos antigos, como a maioria do povo não compreendia mais o hebraico lido, um ou alguns tradutores explicavam as porções lidas (daí a origem do Targum). Também era comum uma exortação por parte de algum mestre a respeito do que foi lido. Com raríssimas excessões, não havia músicos ou instrumentos musicais, embora a maioria das orações fosse entoada de forma lírica.
Por fim, a organização da sinagoga era um tanto fluida, tendo como principais cargos o chefe sinagogal, que era uma espécie de administrador da mesma, e um encarregado da liturgia. Os leitores, tradutores e expositores costumavam ser escolhidos dentre a congregação, mas com o tempo em muitos locais passou a serem também cargos pré-determinados. O papel do rabino, como conhecemos hoje, provavelmente não se desenvolveu antes da Idade Média.
O modelo para o culto cristão
Talvez lendo os parágrafos anteriores já tenham lhe provocado alguns insights a respeito da relação entre a sinagoga e a igreja. De fato, não é nada estranho que a igreja apostólica, inicialmente composta exclusivamente de judeus, tenha moldado o culto cristão à luz do que eles já conheciam do culto sinagogal. É preciso lembrar, antes de tudo, que durante os 40 anos iniciais da fé cristã, o Templo de Jerusalém ainda estava de pé (e, em verdade, ao menos três evangelhos, a carta de Tiago e todas as cartas de Paulo foram escritas antes da destruição do templo), portanto os próprios discípulos tinham a compreensão de que o local de culto a Deus, de fato, deveria ser realizado no Templo. Ao mesmo tempo, eles agora começavam a ter uma nova compreensão do culto a Deus na Nova Aliança de Cristo, onde o verdadeiro templo é o próprio discípulo. Sendo assim, o culto cristão não consistia de sacrifícios, tanto quanto o culto da sinagoga também não, sendo antes um momento de se viver em comunidade, orar e estudar as Escrituras sob a orientação dos apóstolos.
Portanto, inicialmente a igreja se reunia em casas particulares (o que, por sinal, também ocorria eventualmente com “sinagogas” judaicas), tendo como encarregado principal da congregação os presbíteros (do grego πρεσβύτερος, anciãos), termo emprestado também do contexto judaico, uma vez que os líderes do povo eram chamados de anciãos (vd Mt 15:2 e Mc 7:3). Estes eram auxiliados por diáconos (do grego διάκονος, ministro, servidor), que inicialmente tinham o papel de administradores financeiros da comunidade. Mestres ensinavam as Escrituras, enquanto profetas exortavam o povo (cf At 15:32). Embora os apóstolos não tenham feito uma transcrição exata dos cargos da sinagoga para a igreja, podemos ver muitas semelhanças.
No que se refere à liturgia, as semelhanças ficam mais que óbvias. Novamente, não temos uma descrição detalhada, nem mesmo no Novo Testamento, de como funcionava um culto cristão primitivo, mas temos alguns indícios internos e também alguns poucos testemunhos externos. Basicamente o culto cristão – que ocorria no raiar do domingo – iniciava com orações, seguidas de leituras das Escrituras e explicações apostólicas sobre a leitura (posteriormente substituídas por leituras dos Evangelhos ou cartas apostólicas). Ao mesmo tempo alguém trazia uma palavra de exortação, em alguns casos se cantavam hinos. À noite se retomava a reunião para o Ágape, um jantar comunitário onde também se celebrava a Ceia do Senhor. A relação com o culto da sinagoga fica claro, embora se perceba que o objetivo não era a de haver uma “sinagoga cristã”. Inclusive, da mesma forma que os judeus crente ainda frequentavam os cultos e orações do templo, eles também continuavam a frequentar as sinagogas aos sábados, até como uma oportunidade de anunciar Jesus como o Messias (como fez Paulo inúmeras vezes).
Origens comuns
À medida que reconhecemos as influências judaicas na fé cristã primitiva, fica mais e mais evidente que, mais do que “primas”, a fé judaica e a cristã são irmãs (alguns diriam, separadas no nascimento). Assim como a intenção original de Lutero não era criar uma nova igreja, mas reformar a existente, o objetivo dos apóstolos, seguindo os passos de Jesus, não era o de romper com o Judaísmo, mas sim trazê-lo à plenitude que lhe estava destinado, livrando-o das “tradições dos homens” e trazendo cumprimento às promessas do passado. O fato de o culto cristão ter sido claramente inspirado no culto da sinagoga não deve nos surpreender, uma vez que os apóstolos eram judeus praticantes da religião judaica e era essa a sua bagagem cultural. Mas ao mesmo tempo eles entenderam que faziam parte de um “povo dentro de um povo”, e que precisavam se reunir como comunidade messiânica, além de judaica.
Outro ponto importante é que, no livro de Atos, vemos alguns casos onde o Espírito Santo expressamente dava uma ordem ou orientação aos apóstolos, mas nem sempre parece que isso ocorria da forma como fantasiamos. Na instituição dos diáconos, por exemplo, não temos nenhuma instrução do Espírito, antes vemos Pedro e seu colegas tomarem uma decisão rápida para um problema que tendia a se avolumar. E no entanto, creio eu, o Espírito ratificou a decisão deles. Me parece que o mesmo ocorreu com o culto cristão. Ao que tudo indica, o Espírito não deu uma liturgia aos apóstolos (tanto que nem mesmo temos uma descrição decente no NT de como era um culto cristão), mas eles adaptaram o que tinham, contando com a sabedoria que o Espírito lhes deu. E se o Espírito permitiu que o culto cristão fosse tão parecido com o culto judaico, deve ser que algo de certo eles já estavam fazendo antes de nós.