A herança judaica da fé cristã

A separação definitiva entre judeus e cristãos

Quem hoje vê o Judaísmo e o Cristianismo como duas religiões completamente separadas uma da outra, apesar de sua origem “abraâmica”, não consegue perceber que um dia elas fizeram parte do mesmo habitat. Até que ponto a fé cristã original fez parte do Judaísmo do Segundo Templo, e como ou porque tal separação ocorreu? A culpa disso é somente dos cristãos, ou também dos judeus?

Como visto ao longo dos capítulos anteriores, existem suficientes provas, tanto históricas quanto escriturísticas, de que tanto Jesus Nazareno, quanto seus apóstolos e a igreja fundada por eles, não apenas eram judeus em termos étnicos, mas também praticantes da fé judaica do primeiro século. Diante disso, é natural que se questione até que ponto Jesus e a igreja apostólica se envolveram com a religião judaica.

Infelizmente o Cristianismo em geral foi contaminado por um sentimento anti-judaico desde muito cedo, e isso levou a um “torcer de nariz” quando o judaísmo de Jesus é trazido à tona. Uma grande parcela prefere ignorar isso, às vezes afirmando que ele, na verdade, condenava o Judaísmo completamente, enquanto outros chegam ao ponto de dizer que Jesus era na verdade cristão! Entretanto, a remoção deste véu maldito e infundado nos permite ver, não apenas através de fontes extra-bíblicas, mas também bíblicas, a forma como Jesus e a igreja praticavam o Judaísmo de sua época.

A seita dos nazarenos

Uma das provas mais contundentes que temos no próprio Novo Testamento sobre a judaicidade da fé cristã original está no livro dos Atos dos Apóstolos. Diante do Procurador romano Félix, um certo Tértulo (possivelmente um promotor contratado pelo Sinédrio judaico) faz a seguinte acusação contra Paulo: “…este homem é uma peste e promove desordens entre os judeus do mundo inteiro, sendo também o principal agitador da seita dos nazarenos...” (At 24:5). Este pequeno registro de Lucas está repleto de implicações históricas! Em primeiro lugar, as próprias autoridades judaicas percebiam a nascente fé cristã como uma seita judaica. Este termo, às vezes também traduzido como “partido” é o mesmo utilizado para os fariseus e os saduceus. Ou seja, os judeus que criam em Jesus eram vistos como uma quinta seita judaica, e não como um grupo religioso separado e estranho ao meio judaico. O termo nazarenos foi usado provavelmente por causa do “sobrenome” de Jesus, “o Nazareno”. Logo, os que seguem o Nazareno, são os Nazarenos. Além disso, o Sinédrio reconhece que esta seita tem causado problemas “entre os judeus”, logo é um problema interno. Inclusive, Paulo só acabou nas mãos de Roma porque os judeus tentaram matá-lo dentro do Templo, o que precipitou a intervenção dos soldados romanos. Ou seja, não foram os judeus que entregaram Paulo aos romanos. Provavelmente eles gostariam de resolver o problema eles mesmos.

Existem outras provas mais sutis da relação entre os primeiros crentes e os judeus da época, e o que fica como certeza é que a relação, tanto de Jesus, quanto dos apóstolos e dos primeiros discípulos com seus conterrâneos judeus era de equivalência. Ou seja, eram judeus discutindo com judeus a respeito de assuntos judaicos. Como escreveu E. P. Sanders: “Os debates de Jesus com os fariseus devem ser entendidos como parte das disputas teológicas e sociais que eram comuns no judaísmo do Segundo Templo“. Ora, se isso é de fato assim, como é possível que num espaço de cerca de um século Judaísmo e Cristianismo tenham se tornado religiões tão diferentes e antagônicas?

A fenda se torna um abismo

Até o ano 70, apesar das perseguições levantadas pelo Sinédrio judaico contra os primeiros discípulos, a fé cristã era algo predominante judaico. Os apóstolos judeus eram considerados os guardiões da sã doutrina de Jesus; Jerusalém era a sede da igreja-mãe e a referência para qualquer disputa; apesar de não termos números exatos, é possível que a quantidade de judeus e gentios convertidos fosse quase a mesma; não apenas gente do povo cria em Jesus, mas também sacerdotes (saduceus?) e fariseus (At 6:7; 15:5); Paulo, um judeu, levou o Evangelho aos gentios tementes a Deus, mas também ao judeus helênicos e gentios pagãos, convertendo-os ao Deus de Israel; e tão importante quanto, os crentes judeus, especialmente os de Jerusalém, continuavam a ter o Templo em alta estima. Entretanto, no ano 66 da Era Cristã as coisas começaram a mudar.

A seita judaica conhecida como Zelotes iniciou o que ficou conhecido como a Primeira Guerra Judaico-Romana, que perdurou por sete anos. No ano 70, o general Tito cercou a cidade de Jerusalém e depois de menos de cinco meses, invadiu a cidade e a queimou completamente, deixando o Templo em ruínas. Neste dia, o Judaísmo do Segundo Templo foi ferido mortalmente, e a semente de um novo Judaísmo floresceu. No final das contas, dentre todas as seitas judaicas existentes, somente o Farisaísmo não foi eliminado totalmente, dando origem ao que ficou conhecido como Judaísmo Rabínico. O Saduceísmo, fortemente arraigado nas estruturas de poder judaicas, especialmente à classe sacerdotal, perdeu suas estruturas. Conforme alguns historiadores apontam, mais tarde o Judaísmo Caraíta surgiria a partir da herança saduceísta. Os Essênios foram massacrados pelos romanos, ao ponto de não sobrar ninguém que pudesse dar continuidade às suas crenças. O único legado da comunidade de Qumran foram os Manuscritos do Mar Morto encontrados escondidos nas cavernas da Judéia na primeira metade do século XX. Os Zelotes foram igualmente massacrados em combate direto com os romanos, e entraram para a história judaica como malditos, os principais responsáveis pela destruição do Templo.

Uma vez que o próprio Sinédrio passou por uma reformulação, e agora que as rédeas de fé judaica estavam nas mãos exclusivas dos fariseus, um rabino chamado Yochanan ben Zakai (algo como João filho de Zaqueu) tornou-se o responsável pela revitalização da fé judaica. Nos primeiros anos pós-templo, Yochanan e seus companheiros precisaram repensar um Judaísmo sem templo, sem sacrifícios e até mesmo sem Jerusalém. Dentre as inovações, um esforço foi feito para afastar os nazarenos da comunhão na sinagoga. Ao mesmo tempo, mais e mais gentios entravam pela Porta aberta por Deus, e assim a distância entre judeus e cristãos foi se avolumando. Apesar disso, é interessante notar que mesmo ao longo do segundo século, líderes cristãos como Justino Mártir e Tertuliano expressaram preocupação com alguns cristãos que frequentavam sinagogas, fossem eles judeus ou gentios. Isso revela que mesmo um século depois da destruição do templo, havia um intercâmbio entre judeus crentes e descrentes na terra de Israel e fora dela.

A definitiva separação de caminhos

Alguns estudiosos apontam o início da divisão entre judeus e cristãos com a evangelização de Paulo aos gentios. Este tipo de abordagem faz parecer que a fé em Jesus como o Messias deveria ter continuado a ser algo estritamente judaico, mas Paulo perverteu isto, levando a Boa Nova aos não-judeus. Obviamente, à luz da Bíblia como um todo, isso não condiz com a verdade. Não apenas a Lei de Moisés e as mensagens dos Profetas apontavam para a salvação dos gentios, como o próprio corpo apostólico – representado em Atos 15 por Pedro e Tiago – compreendeu que a promessa messiânica se estendia a todos os povos da terra. Logo, eles reconheceram que a Paulo e seus companheiros havia sido dada, pelo Espírito do Messias, a missão de levar a salvação também às nações. Entretanto, existe um fundo de verdade na afirmação dos acadêmicos, uma vez que, por meio de Paulo, a igreja passou a ver um influxo muito maior de gentios aos seus quadros, o que, anos mais tarde, provocou uma troca de liderança na igreja.

Com o passar do tempo, à medida que a igreja foi se tornando cada mais gentia, alguns líderes, especialmente no Ocidente, começaram a se preocupar com a criação de uma “identidade cristã”. Em outras palavras, eles desejavam que a fé, que nasceu e floresceu num ambiente judaico, se tornasse algo novo, algo desconectado do Judaísmo. Este foi o nascimento do Cristianismo como religião independente do Judaísmo, algo discutido brevemente aqui. Inclusive, o já citado Tertuliano foi o primeiro a chamar a fé cristã de Cristianismo (christianismus), já numa tentativa de diferenciá-lo do paganismo e do Judaísmo. Por um lado, vemos aqui a necessidade de uma afirmação de identidade por parte de líderes influentes que não tinham qualquer vínculo ou histórico com o Judaísmo; por outro, a consequência de ações e reações tanto por parte dos judeus quanto dos cristãos. Enquanto os primeiros desejavam expulsar os crentes da comunhão da sinagoga e se desassociar ao máximo de qualquer semelhança ou influência cristã, os últimos desejavam quebrar completamente o vínculo entre a fé cristã e suas heranças judaicas, para torná-la algo novo, uma religião independente.

Após mais dois acontecimentos impactantes, uma a Segunda Guerra Judaico-Romana, quando Bar Kochba foi aceito como o Messias por alguns proeminentes rabinos, e mais tarde com a ascensão de Constantino como imperador de Roma, a separação entre judeus e cristãos tornou-se definitiva. Isso não significa que grupos intermediários não tenham existido ao longo da história, como os Ebionitas, ou mesmo um grupo que Eusébio chama de Nazarenos, existente ainda no século IV. Entretanto, ao que parece, a maioria deles sucumbiu a influências gnósticas, o que acabou por caracterizá-los como heresias.

O resultado é que, após muitos séculos, especialmente com a monopolização da religião por parte da igreja católica romana, a fé cristã original desassociou-se completamente de suas origens judaicas. Mas é claro que esta afirmação é um exagero, uma vez que é impossível desassociá-la completamente. Esforços foram feitos para que Jesus se parecesse mais com os europeus, assim como práticas e celebrações foram mudadas para não serem associadas com os judeus – um exemplo perfeito disso é a determinação de que a Páscoa cristã nunca coincida com a Páscoa judaica. Entretanto, pensadores livres, assim como estudiosos sinceros perceberam, há tempos, que a igreja cristã é filha de Israel, e como tal compartilha de suas Escrituras, crenças fundamentais e até mesmo de sua linguagem própria.