Os escritos apostólicos contidos no Novo Testamento podem ser compreendidos como uma longa interpretação da Lei e dos Profetas (o Antigo Testamento). Que regras hermenêuticas eles utilizaram para realizar essas interpretações? E como essas regras denunciam o caráter intrinsecamente judaico de toda a base doutrinária do Novo Testamento?
O dicionário Oxford define o termo “exegese” como “comentário ou dissertação que tem por objetivo esclarecer ou interpretar minuciosamente um texto ou uma palavra”. Quando falamos em exegese bíblica, estamos falando da interpretação daquilo que está escrito, tendo como objetivo final estabelecer a doutrina contida nas Escrituras. A Hermenêutica bíblica é o nome dado às técnicas utilizadas no exercício deste tipo de exegese, ou seja, são as regras estabelecidas para interpretar os textos bíblicos.
Da mesma forma que hoje estamos separados dos textos do Novo Testamento em pelo menos dois mil anos, no primeiro século os judeus já estavam distantes cerca de quatrocentos anos dos textos mais recentes, e cerca de mil anos dos mais antigos! Portanto, assim como hoje precisamos definir um método para interpretar tais textos, os judeus daquele tempo também precisavam. E eles o fizeram.
A Hermenêutica judaica do primeiro século
Não cabe aqui tratarmos da história da hermenêutica judaica, bastando apresentar uma breve noção de como os estudiosos judeus interpretavam as Escrituras disponíveis em seu tempo. Tradicionalmente se considera que a tarefa de interpretar e ensinar as Escrituras ao povo teve início no ministério de Esdras entre os judeus que retornaram do exílio. Encontramos no livro de Neemias 8:8,9 uma breve descrição de como os levitas precisavam explicar ao povo o que eles estavam lendo na Lei, pois naquele tempo eles já não compreendiam bem o hebraico bíblico, falando ao invés disso, o aramaico. De acordo com o Judaísmo rabínico, ali nasceram tanto a sinagoga quanto a função do escriba “mestre da Lei”.
Lá pelo final do século I a.C, início do século I d.C., existiu um fariseu chamado Hilel, fundador de uma das escolas de interpretação bíblica mais famosas do Judaísmo. Ele estabeleceu algumas regras hermenêuticas para embasar sua própria exegese, as quais se tornaram um padrão por gerações. A seguir, segue um resumo das sete regras de interpretação traçadas por Hilel no primeiro século da Era Cristã.
- Qal vahomer (leve e pesado): se uma afirmação for tida como verdadeira para um caso de menor importância, então também será verdadeira para um caso de maior importância;
- G’zerah Shavah (equivalência verbal): o significado de um termo em uma passagem de claro sentido poder ser aplicado a este mesmo termo em uma passagem ambígua;
- Binyan ab mikathub echad (dedução a partir de uma norma): uma consideração achada em um texto pode ser aplicada a outros por analogia;
- Binyan ab mi-shene ketubim (dedução a partir de mais de uma norma): na combinação de dois ou mais textos se estabelece um princípio geral;
- Kelal u-Perat /Perat u-kelal (do geral ao particular; do particular ao geral): um princípio geral e importante é estabelecido, sendo ampliado e particularizado;
- Kayotze bo mimekom akhar (analogia de outra passagem): passagens em conflitos podem ser interpretadas diante de uma terceira passagem;
- Davar hilmad me’anino (interpretação pelo seu contexto): as normas anteriores ou posteriores determinam o seu significado, conforme o contexto original da passagem estudada.
Como dito, essas regras hermenêuticas de Hilel – que provavelmente não se originaram nele, mas foram passadas à posteridade por seu intermédio – consolidaram um método exegético que dependia unicamente do que estava escrito, ora comparando um texto com o outro, ora buscando o sentido dentro do contexto. Tais métodos se tornaram tão difundidos que percebemos sua influência até mesmo nos escritos apostólicos.
A hermenêutica judaica do NT
Como afirmado anteriormente, os escritos do Novo Testamento são, a grosso modo, uma interpretação das Escrituras judaicas. Numa comparação um tanto imperfeita, enquanto os fariseus produziram os talmudes, os cristãos produziram o Novo Testamento. Imperfeita, mas não incorreta, pois quando analisamos os escritos apostólicos (evangelhos, epístolas, o Apocalipse) como documentos judaicos, percebemos as regras de Hilel aplicadas ali! Eis alguns exemplos:
Em Mateus 6.30, Jesus diz: “Pois, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe, e amanhã é lançada no forno, não vos vestirá muito mais a vós, homens de pouca fé?”. Esta comparação entre coisas menores e maiores é condizente com Qal vahomer. Hebreus 9.11-22 se encaixa bem no quarto método (dedução a partir de várias normas), baseando seu argumento numa compilação de Ex 24.6-8, Lv 8.15-19, Nm 19.4 e Jr 31.31. Ao que parece, Pedro faz uso do sexto método (analogia) para demonstrar, em 1Pe 2:4-8, que Cristo é, ao mesmo tempo, a Pedra Angular e a pedra rejeitada. Para um aprofundamento maior neste assunto, recomendo o livro Tesouros Ocultos, de Joseph Shulam, onde ele traz extensivos exemplos do uso das regras de Hilel no Novo Testamento.
Uma dessas passagens, que gostaria de destacar aqui, é Mateus 2:23. Ali encontramos uma “prova” bíblica de que Jesus, o Messias, seria chamado “Nazareno”. O problema é que se procurarmos, de Gênesis a Malaquias, não encontraremos tal profecia! Mateus errou? Ou talvez a pergunta seria: o Espírito Santo errou? Estaria Mateus “forçando a barra” para provar um ponto pessoal? Ou será que a sua interpretação das Escrituras se encaixa perfeitamente no tipo de hermenêutica praticada em seus dias? Neste caso, o Talmude tem muito a nos esclarecer.
Sabemos hoje que as tradições exegéticas judaicas do primeiro século já haviam apontado que o Messias se revelaria na Galiléia, e que, especialmente devido ao texto de Isaías 11, ele seria chamado “renovo” (netser, em hebraico). Além disso, outras passagens, como Zacarias 6:12 também fazem referência a um “renovo”, o qual os mestres judeus haviam compreendido se referir ao Messias. Como vimos acima, Hilel consolidou regras de interpretação que já circulavam entre os estudiosos, e talvez a forma mais “judaica” de se interpretar a Bíblia é o Midrash. No final das contas, todas as regras de Hilel se baseiam em Midrash, mas uma definição mais correta seria a seguinte: duas ou mais passagens das Escrituras podem ser usadas como peças de um quebra-cabeças, e quando juntas, elas revelam uma verdade parcialmente oculta. Não chega a se tratar de uma interpretação mística, mas em alguns aspectos é uma interpretação alegórica.
Não existem hoje provas concretas disso, mas tudo leva a crer que o midrash de Mateus 2:23 era conhecido entre os judeus, a tal ponto que o autor não se esforça minimamente para explicar de onde ele tirou essa profecia! Tudo o que ele diz é: “cumpriu-se o que foi dito pelos profetas“; perceba o plural. Este midrash junta elementos das profecias de Isaías a respeito do Renovo (netser), com o fato do Messias ser desprezado (assim como a cidade de Nazaré também era) e com o próprio nome da cidade pela qual Jesus se tornou conhecido – ao longo dos evangelhos ele é sempre chamado “Jesus, o Nazareno”. Inclusive, é motivo de debate até hoje se a origem etimológica do nome da cidade de Nazaré (Natsrat) provém do termo hebraico netser, o que tornaria a relação com a profecia ainda mais certa.
O Novo Testamento como um registro do Judaísmo do Segundo Templo
No período do segundo templo (ou seja, entre o retorno da Babilônia até o ano 70), o Judaísmo produziu uma grande quantidade de obras religiosas hoje conhecidas como apócrifos (porque não foram considerados inspirados) e pseudoepígrafos (livros tardios atribuídos a personagens do passado). Tais obras, como Jubileus, o Livro de Enoque, Macabeus e o Apocalipse de Baruque são de extrema importância para entendermos a compreensão judaica daqueles dias a respeito de sua própria fé, assim como de si mesmos como povo. Entretanto, a maioria dessas obras não reflete uma sistematização doutrinária judaica rígida, e também não pode ser considerada como um relato fidedigno do que as autoridades religiosas da época pensavam. Esse tipo de obra só foi surgir com a Mishná, lá pelo século II d.C, o que deixa uma lacuna de quase 200 anos na história da religião judaica.
Entretanto, como muitos estudiosos hoje vêm percebendo (inclusive, uma grande parte deles, judeus!) é que o Novo Testamento é de fato uma compilação de documentos judaicos do primeiro século, que apresenta de forma magistral e precisa o Judaísmo da época e suas lutas internas. Estudiosos como Daniel Boyarim, Dave Flusser e David Bivin escreveram obras seminais demonstrando como as palavras de Jesus relatadas nos evangelhos, assim como a doutrina apostólica que se desenvolveu com o surgimento da igreja, encontram paralelos nas tradições judaicas mais tardias, encontradas na Mishná ou no Talmude. Isso vem demonstrar o quanto o Novo Testamento é mais que um mero documento cristão, e certamente não é o produto de um grupo heterodoxo em uma campanha anti-judaica. Ao contrário, percebemos ao longo de todo o Novo Testamento uma descrição viva e verdadeira dos judeus, dos seus costumes, dos seus dilemas, das intrigas, das disputas religiosas e da própria tentativa de se interpretar as Escrituras Sagradas da melhor forma possível.
Há um amplo consenso hoje entre os estudiosos de que os escritos do Novo Testamento deveriam constar entre os documentos produzidos pelo Judaísmo do Segundo Templo, a maioria deles categorizados como interpretações “sectárias” das Escrituras Sagradas. Ou seja, da mesma forma que judeus dos últimos séculos antes de Cristo produziram livros sapienciais, históricos e apocalipses conforme sua visão de mundo; da mesma forma que a comunidade de Qumran (essênios?) produziu os Manuscritos do Mar Morto no primeiro século da Era Cristã conforme a sua interpretação das Escrituras; e assim como os fariseus deram origem ao Judaísmo rabínico com suas interpretações mishnaicas e talmúdicas a partir do segundo século, também conforme suas próprias tradições; assim também os judeus cristãos produziram seus evangelhos, interpretações e apocalipses, conforme suas tradições e interpretações das Escrituras. E isso os torna tão judaicos quanto todos os demais.