A Bíblia precisa de uma atualização?

Recentemente, um conhecido líder evangélico veio a público para dizer que a Bíblia precisa ser atualizada, fazendo referência específica a algumas palavras do apóstolo Paulo. Embora tais afirmações tenham chocado o meio evangélico, especialmente por vir de uma figura de quem não se esperava tal, a ideia não é nova. Já há anos pregadores de diferentes denominações e vertentes cristãs vêm propagando uma mensagem revisionista em relação a algumas doutrinas bíblicas.

Por um lado, entendemos que os tempos mudam. Desde os dias de Paulo até nós, são dois milênios de história. Simplesmente vinte séculos de mudanças culturais, econômicas, sociais, etc. Some a isso o fato de nós, brasileiros (e ocidentais, como um todo) pertencermos a uma tradição cultural totalmente diferente da de Jesus e dos apóstolos. Sendo assim, seria natural pensarmos que, talvez, precisemos mesmo avaliar com cuidado o que eles ensinaram como verdade, e adaptar isso de alguma forma aos nossos tempos.

Antes de prosseguir, é bom deixar claro que algumas coisas que consideramos como “coisas do nosso tempo”, já existiam nos tempos apostólicos. A assim chamada “revolução sexual”, por exemplo, é coisa da cultura greco-romana! No primeiro século, homens e mulheres eram livres para se relacionarem sexualmente com quem quisessem, havendo concessões até mesmo para relações com pessoas do mesmo sexo. Aborto? Era amplamente executado, em algumas situações até com caráter religioso. E por aí vai. Portanto, erra quem pensa que Jesus, Paulo e os demais apóstolos não viviam em um ambiente muito parecido com o que se delineia em nossa geração.

Se a Bíblia, então, não precisa ser atualizada, ou a doutrina reinterpretada sob o olhar contemporâneo, como devemos lidar com assuntos sensíveis, como a igualdade da mulher, escravidão, condenação à homosexualidade e machismo? Porque, sob um olhar contemporâneo, a Bíblia é machista, misógina, escravagista e homofóbica. Será mesmo?

Em nossa página sobre as doutrinas bíblicas, comentamos que, dentre os diferentes ensinamentos cristãos presentes no Novo Testamento, precisamos diferenciar entre o que é dogma, doutrinas incompletas e instruções culturais. Dogma é toda verdade totalmente revelada[simple_tooltip content=’Ex: Deus é um; tudo foi criado por Ele; Jesus é o filho de Deus;’]1[/simple_tooltip]; as doutrinas incompletas são aquelas que têm revelação apenas parcial[simple_tooltip content=’Ex: Jesus vai voltar, mas antes ou depois da grande tribulação?’]2[/simple_tooltip]; instruções culturais são mandamentos dados para a época apostólica, e que tinham como finalidade, especialmente, não gerar escândalos que impedissem a propagação da mensagem cristã. De modo geral, esse tipo de doutrina tem caráter transitório, pois diferentes culturas lidam com algumas questões de forma diversa.

Um bom exemplo de uma instrução cultural é a ordem de Paulo para que as mulheres casadas não se manifestassem nas reuniões da igreja em Corinto, mas que consultassem seus maridos em casa. Se pegarmos outros ensinos de Paulo, como a de que na igreja não deve haver diferenciação de valor, honra ou importância entre homens e mulheres (Gl 3:28), ou a constatação de que, na igreja primordial havia profetizas (At 21:9) – e quem possui o dom profético precisa exortar sua audiência! –, percebemos que não é da natureza da doutrina cristã bíblica tolher ou reduzir o papel da mulher no seio da fé. Maria Madalena foi a primeira pessoa a anunciar a ressurreição de Jesus!

Percebemos, então, que é mais provável que a instrução de Paulo tenha a ver com a forma como a sociedade coríntia (e outras, para todos os efeitos) poderia ver a igreja caso algo tão escandaloso (assumo um tom de voz irônico aqui) quanto uma mulher casada perguntar algo em público, ocorresse normalmente. O mesmo diz respeito à escravidão, que merece um artigo apenas para si, mas que era algo cultural, social e legalmente estabelecido na sociedade antiga. Propor o fim da escravidão no primeiro século seria desafiar o status quo da economia mundial, coisa que não estava na agenda apostólica. Não obstante, a escravidão perdeu a força nos séculos seguintes justamente por causa da doutrina cristã de valorização do ser humano.

Alguns outros temas sensíveis, como o papel da mulher, orientação sexual, etc, precisam ser analisados sob esta mesma ótica. Será que Paulo, por exemplo, errou quando incluiu os “que se deitam com homens” na lista de pecadores que não herdarão o Reino de Deus (1Co 6:9)? Talvez o que ninguém tenha percebido (ou não se importou em perceber) é que a expressão usada por Paulo, arsenokoitai, significa, literalmente, “alguém que deita com um homem”, e que tal expressão encontra total amparo na Lei mosaica, em Lv 20:13, onde se encontra escrito: “O homem que se deitar com outro homem como se fosse uma mulher, ambos cometeram uma abominação…”. Este tipo de afirmação, da parte de Paulo, pode ser resignificada sem violar o mandamento divino? Concluímos, então, que nem tudo pertence à categoria de “doutrinas culturais”, muito menos de revelações parciais.

Portanto, quando estudamos cuidadosamente as doutrinas, ou mais propriamente os mandamentos deixados por Jesus e seus apóstolos nas linhas do Novo Testamento, podemos perceber o que está claramente estabelecido como uma verdade imutável, um dogma, e o que é passível de discussão e interpretação. A Bíblia não precisa e nunca precisou de atualização. Ela contém a verdade estabelecida e imutável revelada pelo próprio Deus. Há quem discorde, claro, e qualquer um tem a liberdade de discordar, ou de não crer simplesmente. Entretanto, esse artigo não se destina aos céticos ou aos questionadores da inspiração das Escrituras, mas aos crentes, aqueles que confiam na palavra de Paulo, que diz que “toda Escritura é inspirada por Deus” (2Tm 3:16), e de Pedro, que afirma que nada nela provem do homem, mas de Deus, por orientação do seu Espírito (2Pe 1:20,21). O que realmente precisamos é estudar cuidadosamente o que a Escritura nos ensina e por em prática seus mandamentos!