Qual é, afinal, o nome de Deus?

Os leitores da Bíblia em português já estão acostumados com o termo “Senhor” aplicado a Deus, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. Os mais atentos, porém, já notaram algumas estranhezas no texto bíblico, em passagens como “…o Senhor nosso Deus é o único Senhor” (Dt 6:4) ou “…tu, cujo nome é Senhor…” (Sl 83:18) Não apenas “Senhor” é apresentado como sendo o nome de Deus, como também geralmente vem escrito em letras maiúsculas (o nome correto deste estilo é versalete). A explicação simples para isso é que, na verdade, Deus tem um nome em hebraico e a maioria das Bíblias em português o traduzem como “Senhor”. Entretanto, a história completa é bem mais complexa.

Antes, porém, de entrarmos nessa seara, precisamos saber algumas coisas sobre os textos bíblicos nas línguas originais. Em primeiro lugar, os livros do Antigo Testamento (AT) foram escritos em hebraico (e um pouco de aramaico), enquanto os do Novo Testamento (NT) foram escritos em grego. O hebraico antigo, com o qual o AT foi escrito, originalmente não possuia vogais, apenas consoantes. Sim, você entendeu certo: não existiam a, e, i, o, u no hebraico usado por Moisés, Davi ou Isaías! Sendo assim, palavras diferentes podiam ser escritas usando a mesma sequência de consoantes, e somente a pronúncia (ensinada, obviamente, de forma oral) poderia diferenciá-las. É como se, em português, escrevêssemos bolo, bala e bola apenas como BL. Somente o contexto poderia nos dar uma pista a respeito do quê se estaria falando.

Voltando então ao nome de Deus, em hebraico ele é escrito com quatro consoantes: יהוה, YHWH (o hebraico é escrito da direita para a esquerda). Por causa disso, ele é também chamado de “tetragrama”, significando “quatro letras”. Os nomes dessas letras, em sequência, são Yod, He, Wav, He. Diante disso, como você leria o nome acima?  Esta é uma dúvida que paira há séculos, não apenas na mente de leigos, mas também de estudiosos da Bíblia. Mas, antes, me permita aprofundar um pouco mais sobre a língua hebraica.

Lá pelos idos do século VI, um grupo de escribas conhecidos como “massoretas” decidiu que era hora do texto hebraico ser vocalizado. Como na prática as palavras já era pronunciadas com vogais, eles então empreenderam a árdua tarefa de reescrever todo o texto bíblico (contendo apenas palavras com consoantes) inserindo nele as vogais presentes na pronúncia tradicional. A partir disso, nasceu o que conhecemos hoje como o Texto Massorético (TM), ou seja, um Antigo Testamento em um hebraico mais moderno, digamos assim, agora com vogais. Por que isso é importante para o nosso estudo? Porque o nome de Deus também ganhou vogais! Desta forma, o Nome de quatro letras originais passou a ser escrito, ora como יְהֹוָה (YêHoWaH), ora como יְהוָה (YêHWaH), mas também como יהֹוָה (YHoWaH) e יְהוִה (YêHWiH) — note os pontos e traços em cima e embaixo do tetragrama; são as vogais.

Repare que o Nome é escrito de formas diferentes em diferentes partes da Bíblia hebraica. De acordo com um artigo da Wikipedia, a frequência de cada um é: YêHWaH a mais comum, aparece 5.678 vezes; YHWaH, 789 vezes; YêHWiH, 269 vezes; YêHoWaH, 46 vezes; YêHoWiH, 32 vezes; YHoWaH, 6 vezes. Talvez aqui você tenha se lembrado que, em português, existe uma forma comum para o nome para Deus: Jeová. Esta transliteração foi usada por muito tempo em traduções da Bíblia pelo mundo, embora hoje em dia esteja restrita apenas à Bíblia dos Russelitas (TJ). Entretanto, ao longo do tempo, os estudiosos passaram a crer que esta não era a pronúncia original do nome de Deus, o que tornou essa nossa busca ainda mais complexa.

Desde, pelo menos, o século I a.C., os judeus, por temor de usar o nome de Deus em vão, pararam de utiliza-lo corriqueiramente. Isso provavelmente ocorreu porque eles não queriam que o sagrado Nome caísse na boca dos não-judeus e fosse vituperado. Inclusive, quando a Torá foi traduzida para o grego, no século II a.C., preferiu-se não traduzir ou transliterar o Nome, mas substituí-lo por kurios, “senhor”. Desse modo, somente os escribas e os sacerdotes coheciam a real pronúncia do nome de Deus. Então, as vogais que os massoretas adicionaram ao nome de Deus na verdade recursos de leitura, e não propriamente a pronúncia real. Ou seja, quando um judeu lesse o nome de Deus no texto massorético, não leria de fato o Nome, mas termos substitutos como “adonai” (Senhor) ou “elohim” (Deus). De fato, analisando as pronúncias descritas acima, percebemos que às vezes as vogais batem com essas palavras substitutas, embora, em português, o “a” de Adonai não bata com o “e” de Yehowah, por exemplo, mas o sinal vocálico massorético é o mesmo, um sheva (:).

Outro fato é que, fora dos círculos rabínicos, os estudiosos das línguas bíblicas defendem que a real pronúncia do nome de Deus seria YaHWeH (iavé ou iaué, a depender de como alguém lê o Wav). Eles se baseiam em nomes hebraicos que contêm o nome de Deus, como Isaías, Jeremias, Elias, além de algumas poucas inscrições em grego que vertem o Nome como Iaué e Iabé. Por exemplo, Jeremias é escrito em hebraico como YeReMYaHu, enquanto Elias, ELYahu. Este final “Yahu”, para os linguistas, seria uma pista da real pronúncia do Nome. Além disso, Deus também tem um “apelido”, muito usado nos Salmos: Yah (apropriado pelo culto Rastafari como Jah), presente, por exemplo, no termo HaleluYah (Aleluia, “louvem a Yah”). Eles então afirmam que as prováveis vogais do Nome seria “a” e “e”. Porém, neste sentido, existem discrepâncias, pois outros nomes contendo o tetragrama, como Josué, Jeoaquim e Josafá, começam, em hebraico, com “YeHo”. Neste caso, faria mais sentido considerar a pronúncia correta como Yeho-alguma-coisa.

Diante deste excesso de informação e opiniões conflitantes, ficamos num impasse. Em quem devemos confiar: nos massoretas, nos rabinos ou nos linguistas? Diante de todas as possibilidades — Yêva, Yva, Yêvi, Yêhova, Yêhovi, Yhova, Yavé, Yaué — qual deveríamos eleger como a mais próxima da real pronúncia do Deus Todo-Poderoso? Na dúvida, a pronúncia mais usada, Yêva, que poderia ser transliterada para o português como Jêva, ou a mais comum (e que também encontra amparo massorético, embora menos utilizada), Yêhova (Jeôva) poderiam ser usadas. Confesso que a tese acadêmica para Yavé (Javé) não me convence muito, o que me faz, pessoalmente, não gostar dessa forma. Mas, ao mesmo tempo, toda essa dúvida nos conduz a um questionamento ainda mais profundo: por que, depois de tanto tempo, ainda temos dúvidas em relação à pronúncia do nome de Deus, algo que deveria ser tão importante, tão sublime? Isso me dá algumas pistas que, inevitavelmente, nos levam a Jesus.

O apóstolo Paulo, escrevendo à igreja em Filipos, fez a seguinte afirmação a respeito de Jesus:

“Por isso Deus o exaltou à mais alta posição, e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai.” — Fp 2:9-11

Segundo esta declaração, o nome de Jesus está acima de TODO nome, ao ponto que TODOS os seres viventes — anjos, homens vivos e mortos — deverão se curvar a ele e confessar que ele é SENHOR (e isso para a glória de Deus, não a dele própria!). Uau! Então isso significa que o nome de Jesus está acima até mesmo do nome de Deus! E apesar disso soar muito estranho — e certamente uma heresia para judeus ortodoxos — se encaixa em outras declarações apostólicas, como a de Atos 4:12 ou ao fato de absolutamente tudo na era cristã ser feito em nome de Jesus (curas, exorcismos, batismo, orações…). O próprio fato de a pronúncia do nome de Deus ter sido “selada” há quase dois milênios pelos próprios judeus, e isso ter sido perpetuado pela tradição cristã, nos indica que, por mais que o assunto seja instigante, e por mais que seria muito valioso saber afinal de contas qual a real pronúncia do nome de Deus, isso não importa para a nossa fé a nem mesmo para nossa relação com Ele.

Fora isso, pensando em termos puramente acadêmicos e textuais, acho que seríamos mais fiéis ao espírito do texto bíblico se ao menos tentássemos traduzir mais corretamente o sentido do nome de Deus no hebraico. Uma vez que o sentido de יהוה se aproxima de algo como “aquele que foi, é e será”, por que não traduzir o tetragtama como “o Eterno”? Inclusive, várias versões judaicas empregam esse termo para o nome divino. Isso desfaria as já citadas estranhezas das nossa traduções, permitindo leituras mais fluidas, como “…o Senhor nosso Deus, o Eterno é um” “…tu, cujo nome é Eterno…”, além de desfazer problemas como quando o nome de Deus vem acompanhado do termo “Senhor”, como é o caso de Ez 16:8, onde se lê אֲדֹנָי יְהוִה, (adonai yehvih) mas cuja tradução foge do literal e traz, normalmente,“Senhor Deus”. Neste caso “Senhor Eterno” seria mais coerente.

Uma última nota sobre este assunto é que um estudioso judeus messiânico chamado Nehemiah Gordon defende que a pronúncia do nome de Deus é de fato Yehowah. Ele embasa sua opinião em supostos escritos rabínicos medievais (e eu digo “supostos” porque pessoalmente nunca os vi) que evidenciam que a história da “pronúncia perdida” não é verdadeira, e que realmente o nome de Deus é até hoje pronunciado entre eles como Yêhova. Quanto a isso, só o que podemos fazer é esperar para ver como isso será aceito pelos demais estudiosos. Enquanto isso, ficamos com o que temos, e nos apegamos à verdade de que, pelo poderoso nome de Jesus, temos acesso ao Deus Eterno. Halelu Yah!

P.S.: Uma curiosidade que torna o assunto ainda mais intrigante é que os verbos hebraicos que supostamente formam o nome divino: yihyeh (ele será), hoveh (ele é) e hayah (ele foi) apoiariam uma pronúncia próxima a Yêhovah, conforme demonstra a imagem abaixo. Ao que tudo indica o debate continua em aberto…