O Apocalipse é um livro cheio de imagens estranhas e linguagem criptográfica. Ao mesmo tempo, muitas de suas passagens nos remetem a mensagens e palavras familiares. O que o último livro do Novo Testamento tem a ver com a literatura apócrifa judaica? E por que o livro parece ter sido escrito tendo os judeus em mente?
Lutero quase não incluiu o Apocalipse em sua tradução da Bíblia para o alemão. Segundo ele, era um livro “muito judaico”. Aparte dos preconceitos que tinha, ele percebeu que em vários momentos o livro da Revelação não parecia ensinar nada muito valioso do ponto de vista doutrinário, sendo antes um livro enigmático e estranho. Ele não estava de todo errado. De fato, o Apocalipse não se enquadra como um livro histórico, um evangelho, nem um livro poético ou sapiencial ou mesmo como uma epístola – embora contenha sete cartas endereçadas a sete igrejas da Ásia, atual Turquia. Antes, o nome dado ao estilo literário do livro do Apocalipse é… apocalíptico!
A literatura apocalíptica judaica
A literatura apocalíptica judaica, conforme o termo cunhado pelos acadêmicos, não surgiu com o Apocalipse de João – embora o nome deste estilo tenha sido emprestado do livro. A “literatura apocalíptica do Antigo Testamento” é vasta; floresceu nos últimos séculos antes de Cristo e proliferou nos séculos seguintes. O termo “apocalíptica” (que advém da expressão grega apocalypsis, significando “revelação”) é usado nos estudos bíblicos modernos para se referir a um tipo de texto que descreve, normalmente em termos altamente simbólicos, uma intervenção divina na história humana, para trazer, ou salvação, ou julgamento. Considera-se que um dos primeiros “apocalipses” foi o livro de Daniel, e que a maioria das demais obras que vieram depois o têm como base.
Dentre os apocalipses “apócrifos” (ou seja, extra-bíblicos, que são a maioria) destacam-se os livros de Enoque, o Livro dos Jubileus, o 4º de Esdras e 2º de Baruque. O que estes livros têm em comum é que todos eles relatam uma revelação vinda de Deus, mediada por um ser celestial, a uma pessoa considerada especial. Tais revelações, em geral, têm por objetivo tornar conhecidas as condenações preparadas para os ímpios, assim como a salvação reservada aos justos no futuro. Ocasionalmente, algum conhecimento oculto sobre o reino espiritual também é descortinado. Se esta descrição lhe fez lembrar do livro de Daniel, você matou a charada. Como dito antes, todos os apocalipses partem em maior ou menor grau da mesma premissa encontrada nos escritos de Daniel, e o Apocalipse de João não fica atrás.
A relação entre o Apocalipse e a Bíblia Hebraica
Lendo o Apocalipse, percebemos claramente todos os elementos citados acima. João é a pessoa especial a quem a mensagem é revelada. Jesus é a origem da revelação, e como o próprio livro afirma, ele usou “o seu anjo” como mediador. São tratados alguns fatos aparentemente contemporâneos do autor (como as cartas às igrejas), mas também são reveladas “coisas que acontecerão depois destas” (Ap 1:19). São descritas pragas e castigos para uma humanidade apóstata, assim como as bênçãos e recompensas para os “guardam os mandamentos e têm o testemunho de Jesus” (Ap 12:17). Por fim, ficamos sabendo de alguns detalhes sobre batalhas celestiais, a expulsão de Satanás do céu, assim como o seu aprisionamento e posterior condenação eterna. Mas, em meio aos horrores e imagens perturbadoras que o livro apresenta, também chama a atenção a menção (e às vezes a citação direta) a mensagens encontradas nos livros proféticos do Antigo Testamento.
Para o acadêmico cético, o Apocalipse não passa de um remix de profecias do Antigo Testamento, uma colcha de retalhos de plágios. No entanto, analisa-lo dentro de seu contexto original, judaico e apocalíptico, nos faz compreender melhor este aspecto. Neste sentido, o livro da Revelação serve como um apanhado final de todas as profecias escatológicas das Escrituras, haja vista que aqueles presságios que ainda não se cumpriram, devem se cumprir em algum momento. Por conta disso, não haveria Apocalipse sem Isaías, Ezequiel, Daniel, Joel e Zacarias, para citar os principais. Por outro lado, o excesso de características judaicas do livro da Revelação fez com que alguns destes acadêmicos, especialmente judeus, criassem uma teoria de que, originalmente, o Apocalipse era apenas mais um apocalipse judaico, mas que depois passou por uma revisão cristã, incluindo Jesus como seu personagem principal. O problema com essa teoria é que nunca foi encontrado um proto-Apocalipse que não fizesse referências a Jesus. E ainda mais importante, desde os primeiros séculos da Era Cristã o Apocalipse é conhecido (e estranhado) pelos cristãos assim como ele é.
Os sinais de uma escatologia judaica
Como visto em capítulos anteriores, no período conhecido como interbíblico (de 400 aC a 30 dC, aproximadamente), os judeus produziram uma vasta literatura, categorizada como escritos apócrifos e pseudoepígrafos. A riqueza deste material reside na possibilidade de percebermos a teologia e a exegese existentes no período. Como estamos falando especificamente de escritos apocalípticos (a maioria se enquadra como pseudoepígrafos), o que mais nos interessa aqui é a escatologia presente nestas obras. Lembrando que a Escatologia é o campo da Teologia Cristã que se dedica ao estudo dos últimos dias, ou seja, do fim dos tempos. Uma compreensão apurada da escatologia interbíblica vai nos mostrar a tremenda influência que ela teve não apenas no Judaísmo do primeiro século, mas especialmente na doutrina cristã.
Pense, por exemplo, no conceito de inferno. Para sermos mais fiéis ao texto das Escrituras e precisos no que estamos estudando, vou utilizar o termo hebraico gehenna, comumente traduzido como inferno. Não encontramos, no Antigo Testamento um conceito de gehenna, e muito pouco se fala sobre uma condenação dos ímpios. Até mesmo quando o livro de Daniel afirma que, nos últimos dias, os mortos ressuscitariam, “uns para a vida eterna, e outros para vergonha e desprezo eterno” (Dn 12:2), não chega a fazer afirmações objetivas a respeito de como ou onde os ímpios serão envergonhados e desprezados eternamente. É fato que o conceito vem de outras fontes proféticas, como Isaías e Jeremias, os quais se referem ao “vale do filho de Hinnon” (Ge-Hinnon, no hebraico), como um vale em Jerusalém onde os israelitas sacrificaram seus filhos a Moloque (também chamado vale de Tofete), assim como um lugar de julgamento dos ímpios (vd especialmente Is 66:24 associado a Jr 19:2). Entretanto, existe um grande lapso entre o Ge-Hinnon dos profetas e a Gehenna de Jesus.
A resposta, embora ainda bastante incompleta, é que este conceito se desenvolveu ao longo dos “400 anos de silêncio”, quando os sábios judeus se debruçaram exaustivamente sobre as Escrituras para compreendê-las, interpretá-las e obedecê-las. Diga-se de passagem que os fariseus foram cruciais neste sentido, pois conceitos mais desenvolvidos sobre a ressurreição, condenação eterna e o mundo espiritual, em grande parte vem da hermenêutica deles (vd At 23:7).
Uma mensagem para os judeus dos últimos dias
Existe no livro do Apocalipse alguns termos não muito usuais no Novo Testamento, assim como informações incomuns que podem causar estranheza – e não me refiro às imagens de monstros e seres fantásticos. Tais termos e expressões trazem à tona um background judaico e talvez até mesmo objetive uma comunicação direto com os judeus.
Tome como exemplo as expressões “sinagoga de Satanás” e “que se dizem judeus, mas não são” (Ap 3:9). Uma vez que as cartas são endereçadas a sete igrejas cristãs, porque citar judeus? Alguns diriam que a referência se trata de judeus que perseguiam os crentes de Filadélfia, como aqueles que o próprio Paulo encarou diversas vezes em suas missões. É perfeitamente possível que seja isso mesmo. Ao mesmo tempo, o sentido da mensagem parece ser: “estes que usam falsamente o nome de ‘judeu’, embora não o sejam de fato”. Neste caso, o termo “judeu” parece ser tratado aqui como uma alcunha positiva que estava sendo mal utilizada. E isso se torna ainda mais significativo quando nos lembramos do que Paulo diz sobre “ser um verdadeiro judeu” (cf Rm 2:29). Neste caso – e temos embasamento histórico para isso – Jesus estaria se dirigindo a uma congregação composta de crentes judeus e gentios a respeito da perseguição por parte de grupos judeus incrédulos, judeus estes que, por sua incredulidade e atitudes reprováveis, não mereciam nem mesmo ser chamados ‘judeus’.
Outro exemplo intrigante é a passagem que se refere aos descendentes da “mulher vestida do sol” como “os que guardam os mandamentos de Deus e têm o testemunho de Jesus” (Ap 12:17). Ao que parece, estes possuem duas características complementares, porém distintas: eles não apenas guardam os mandamentos, mas também testemunham sua fé em Jesus como seu Messias. De fato, a opinião mais comum entre os estudiosos da Bíblia é que esta expressão se refira a judeus crentes em Jesus. Se de fato for isso – e parece ser – então o ápice dos presságios do Apocalipse se direciona aos crentes judeus, não aos gentios! Uma linha de interpretação crê que isso se deve ao fato de que, nos últimos dias, após o arrebatamento da igreja, novas conversões ocorrerão, sendo as mais importantes as dos judeus. Neste sentido, o livro parece prever uma conversão em massa de descendentes de Jacó, ainda que não possamos falar da nação israelita como um todo. Então, estes judeus da tribulação seriam o alvo da perseguição do dragão e do seu acólito: a besta que sobe do mar.
Para além destas expressões, os estudiosos notam outras peculiaridades no Apocalipse. É nele que ocorre o maior número de hebraísmos do Novo Testamento (expressões e peculiaridades da língua hebraica que transparecem no texto grego). Os 144 mil são 12 mil judeus, de cada uma das 12 tribos de Israel (ao menos como o autor as enumera). Além disso, mais de uma vez a Gematria é utilizada. Quando o autor afirma que o número da besta é seiscentos e sessenta e seis, e que é um número que pode revelar o seu nome, ele recorre à técnica judaica que representa nomes em forma de números, o que lhes atribui, em contrapartida, um significado mais profundo e oculto.
Por estas e outras razões, não foi à toa que Lutero achava o Apocalipse demasiadamente judaico. Ele não estava errado, a não ser pensar que havia algo de errado nisso. Por um lado, no final do primeiro século a presença judaica na igreja ainda era muito forte, e até mesmo alguns cristãos gentios ainda frequentavam sinagogas. Por outro, parece mesmo que o livro tem uma forte mensagem dirigida especificamente aos crentes judeus dos últimos dias. Seja qual for o motivo desta alta carga judaica, mais uma vez percebemos que, para de fato entender as Escrituras do Novo Testamento, precisamos estudá-las em um contexto histórico, cultural e religioso judaicos do primeiro século.