“Judeu é aquele que o é no interior, e circuncisão a que é do coração, no espírito, não na letra.”
– Rm 2:29
Já tratamos aqui sobre alguns aspectos da teologia de Paulo, as quais só podem ser satisfatoriamente compreendidas dentro de um contexto judaico. Dentre elas está o fato de que Paulo, antes de ser o apóstolo de Cristo aos gentios, como um bom judeu, tinha por missão desviar os gentios do seu estilo de vida pagão e aproximá-los do estilo de vida do povo escolhido. Gostaria de explorar um pouco mais este tópico para demonstrar o que me parece ser um ideal de Paulo em relação aos gentios.
O que é um judeu?
Esta pergunta tem sido feita ao longo dos últimos séculos no sentido de se tentar chegar a uma definição sobre o que define um judeu. São os aspectos étnicos, culturais, religiosos? Todos eles? Entretanto, um tanto distante desta discussão em particular, Paulo apresenta a sua própria concepção do que é um judeu ou, antes, o que Deus lhe revelou a esse respeito. Mas antes de chegar ao ponto, é interessante recordarmos a história do povo de Deus desde o início.
Originalmente, os descendentes de Jacó eram chamados de hebreus, e sua religião não tinha um nome oficial – hoje os estudiosos chamam-na de israelismo, javismo, ou simplesmente “a religião dos hebreus”. Posteriormente, quando Israel nasce como nação, sob a direção de Moisés, o povo escolhido passa a ser chamado israelitas, mas quando o reino se divide, apenas os habitantes do norte permanecem sendo chamados assim, enquanto os do sul passam a ser chamados de judeus (ou judaítas, inicialmente).
Quando ambos os reinos foram conquistados e enviados ao exílio, ao retornarem passaram a ser chamados (e a se chamarem) samaritanos e judeus, respectivamente. Portanto, é bom ter em mente que, a partir do retorno do cativeiro babilônico, aqueles que se chamavam “judeus” não eram exclusivamente provenientes das tribos de Judá e Benjamin, mas também de outras tribos de Israel. O termo “judeu”, então, possui, nativamente, três dimensões: refere-se aos habitantes da região de Judá; refere-se aos muitos descendentes do Jacó que retornaram com Esdras e Neemias do cativeiro; refere-se a todos estes que professam a religião dos judeus, o Judaísmo.
A religião da Bíblia
É indiscutível que a Torá de Moisés é o manual de um sistema religioso que visa permitir aos israelitas cultuar a Jeová, seu Deus. Independente desta religião não ter um nome, ela existia, e os preceitos, mandamentos, ordenanças, rituais e festas memoriais estão lá para provar. Na falta de um nome melhor, vamos chama-la de “religião bíblica”. Uma vez que esta religião é fruto de uma revelação direta de Deus, que foi quem deu os mandamentos a Moisés, faz todo o sentido afirmarmos que esta religião bíblica é a religião verdadeira. Ao menos no contexto bíblico, todas as demais religiões são falsas e cultuam falsos deuses. Já defendi aqui que, quando Jesus traz seu ensino aparentemente revolucionário, na verdade o seu objetivo era um retorno à religião bíblica. Desde os tempos dos profetas, estes denunciavam Israel pelo fato de obedecerem a “mandamentos de homens”, querendo dizer com isso que a religião verdadeira havia sido contaminada por novos preceitos e ideias estranhas à Torá. Jesus, portanto, não pregava o Judaísmo, muito menos o Cristianismo, ele pregava a religião verdadeira de Jeová.
Temos então que Paulo, ao pregar aos gentios, seguia os passos do seu Mestre. Observe que tanto Jesus quanto Paulo eram judeus praticantes, comprometidos com a Torá – e no caso de Paulo, também com as tradições farisaicas, que em última análise se encaixa na categoria dos “mandamentos de homens”. A diferença primordial entre Jesus e Paulo é que o primeiro pregou exclusivamente a judeus, os quais tinham a Torá e ao menos conheciam as bases para viver uma vida que agradasse a Deus. Paulo, por outro lado, pregava a gentios, que em sua maioria não conheciam a Torá ou o Deus verdadeiro, e tinham um estilo de vida completamente distante da Sua vontade. Sendo assim, a missão primordial de Paulo, antes mesmo de pregar Jesus, era converter os gentios do seu paganismo e do seu modo de vida imoral, e apresentar-lhes um novo estilo de vida. Fosse Paulo meramente um fariseu, estaria convertendo-os ao Judaísmo, mas sendo um apóstolo de Cristo, estava convertendo-os à religião verdadeira bíblica.
O conceito de judeu na epístola aos romanos
Na passagem citada no início deste capítulo, Paulo afirma que existe um verdadeiro judeu e uma verdadeira circuncisão. Sobre a circuncisão, ele afirma que existe uma feita na carne, que pode ou não representar alguma coisa – caso o circuncidado cumpra os mandamentos divinos (1Co 7:19) – e outra feita no coração. Para os desavisados, parece que Paulo está inventando uma interpretação espiritualista para talvez diminuir a importância da circuncisão praticada pelos judeus. Entretanto, ele não tirou isso da cabeça dele, mas da própria Torá! É Moisés quem faz a seguinte afirmação: “Circuncidem, pois, o coração de vocês e não mais endureçam seus pescoços!” (Dt 10:16). Jeremias repete a ordem alguns séculos depois: “Circuncidem-se para o SENHOR, circuncidem o seu coração, ó homens de Judá e moradores de Jerusalém” (Jr 4:4). Portanto, conforme explica Paulo, de fato existe uma circuncisão do coração, sendo esta a verdadeira circuncisão, independente se o prepúcio físico foi ou não removido.
Paulo então afirma: assim como existe uma circuncisão verdadeira, existe um judeu verdadeiro. Segundo a sua midrash, o judeu verdadeiro é aquele que o é no interior. O que isso quer dizer? Ora, se o que define um judeu fisicamente é passar pela circuncisão ao oitavo dia (note que não é só isso, mas se um bebê de oito dia é circuncidado por um rabino, é porque seus pais são judeus, e ele pertence à linhagem de Jacó), e se existe uma circuncisão do coração, feita no espírito – e pelo Espírito –, então este que tem o seu coração circuncidado é o judeu verdadeiro. Isso pode ser verdade para um judeu nascido de pais judeus, mas também pode ser verdade para um gentio! É óbvio que, falando isso, Paulo se refere a uma “novidade” que não existia antes da vinda do Messias. Ao menos de forma genérica, não existia a opção de “circuncidar o coração” para os gentios (embora alguns gentios, como Naamã, certamente tiveram seus corações circuncidados), mas quando o Messias veio e pagou pelos pecados de toda a humanidade, não apenas do povo judeu, então uma enorme porta foi aberta para que “todo aquele que invocar o nome do Senhor seja salvo” (Jl 2:32). Sendo assim, Paulo afirma, os verdadeiros judeus são todos aqueles que tiveram seus corações circuncidados, tanto judeus quanto gentios.
O resgate da antiga religião de Deus
Diante da doutrina de Paulo, poderíamos dizer que agora nós, os que cremos em Jesus, tendo nascidos de pais judeus ou não, somos os verdadeiros judeus. Talvez pudéssemos até mesmo nos gabar disso diante dos judeus ortodoxos! Entretanto, acredito que o que nosso apóstolo quer dizer é algo que vai além. Compreendendo que nem Jesus nem Paulo, ou qualquer outro apóstolo pregou o Judaísmo – até porque a religião judaica era tão fragmentada naqueles dias que seria necessário perguntar qual Judaísmo eles estariam pregando – entendo que falando do “verdadeiro judeu” Paulo se referia ao “verdadeiro integrante do povo de Deus”. Afinal de contas, ele faz eco à afirmação ousada de Pedro: “Mas vocês são a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido, (…) vocês, que em outro tempo não eram povo, mas agora são povo de Deus; que não tinham alcançado misericórdia, mas agora alcançaram misericórdia.“
Portanto, poderíamos sumarizar essa questão da seguinte maneira: No passado Deus apresentou aos hebreus a única forma de ter comunhão com ele e prestar-lhe culto, mas com o tempo, os próprios hebreus corromperam esta religião divina. Ainda no passado, os profetas foram levantados pelo próprio Deus para denunciar o afastamento da verdadeira religião, mas inevitavelmente uma nova religião, cheia de corrupções e preceitos humanos, surgiu, ainda que preservasse as bases da verdade. Quando o Filho de Deus veio, sua missão foi pregar um retorno à religião de Deus, ao mesmo tempo que, por sua obra remidora, inaugurasse uma nova fase no plano divino, que era o de abrir as portas da salvação a toda a humanidade. Portanto, nós os cremos nele, muito mais do que apenas “verdadeiros judeus”, circuncidados no coração, passamos a pertencer ao mesmo povo de Abraão, Isaque e Jacó; de José, Moisés e Arão; de Davi, Salomão, Josias e Ezequias; de Elias, Eliseu Isaías, Daniel e todos os profetas! Pertencemos ao verdadeiro povo de Deus, praticantes da verdadeira religião bíblica – a qual não se chama Judaísmo ou Cristianismo, para a confusão de alguns.