A herança judaica da fé cristã

O Judaísmo do Primeiro Século

Diferente do que se possa pensar, o Judaísmo moderno não é o mesmo Judaísmo dos tempos de Jesus. Neste artigo analisamos as semelhanças e diferenças entre estes judaísmos e o quanto isso impacta nossa compreensão da fé cristã original.

O último século viu florescer no contexto dos estudos bíblicos algumas novidades. O estudo do “Jesus histórico”, uma reavaliação de Paulo e sua influência sobre a religião cristã, mas também uma reaproximação entre fé cristã e da religião judaica. Proveniente direto dessa última é a redescoberta do judaísmo de Jesus e dos apóstolos, algo que foi obscurecido durante séculos, até mesmo pelos reformadores. Em meio a essas redescobertas, uma se destaca como pedra angular de qualquer estudo do contexto judaico de Jesus e da fé cristã primordial (evito aqui o uso da palavra primitiva): a de que, no primeiro século, não existia um Judaísmo, mas vários.

Para deixar isso mais claro, vamos usar exemplos conhecidos de nosso tempo. Qualquer uma das grandes religiões do mundo, hoje, tem suas subdivisões, sejam elas inimigas antagônicas ou não. No Cristianismo, temos o catolicismo romano, a igreja ortodoxa e a protestante, para citar algumas. Entre os protestantes, então, o que não falta são subdivisões, das subdivisões. Mas isso também ocorre entre os muçulmanos, sendo xiitas e sunitas a divisão mais famosa. Entre os judeus atuais, existem os ortodoxos, os chassídicos, caraítas, dentro outros. Essas divisões existem por causa de diferentes compreensões sobre a doutrina e sua aplicabilidade na vida cotidiana, às vezes indo ao extremo de haver diferenças a respeito do que se aceita como sagrado ou não.

Olhando por essa ótica, parece óbvio que o judaísmo do primeiro século também vivia essas divisões, ainda mais quando lemos nos Evangelhos e em Atos os embates entre as “seitas” dos fariseus e dos saduceus. Entretanto, por muito tempo, parece que essa informação foi ignorada – ou não muito digna de confiança – e aceitou-se que a fé judaica dos tempos de Jesus fosse uma religião uniforme e monolítica, onde tais grupos, apesar de divergências, pensassem mais ou menos igual. Hoje sabemos que isso está muito longe da realidade.

Os judaísmos do primeiro século

Quando falamos de judaísmos, no plural, não é um exagero. Apesar de haver uma identidade comum a todos os grupos religiosos em um contexto judaico (se assim não fosse, seriam religiões diferentes), as interpretações e visões de cada grupo eram algumas vezes completamente díspares dos demais. Fazia parte dessa identidade comum coisas como a fé monoteísta, a aceitação da circuncisão como sinal do pacto e um compromisso com a Torá e as tradições bíblicas. Entretanto, até mesmo a forma de culto prestado no templo de Jerusalém dividia opiniões.

Pra começar com o que nos é mais familiar, falemos das disputas entre saduceus e fariseus. Tanto o Novo Testamento quanto Josefo atestam que os primeiros só aceitavam a Torá como fonte doutrinária, enquanto rejeitavam veementemente a assim chamada “Lei Oral” dos fariseus (o NT chama isso de “tradições dos anciãos”). O detalhe interessante é que eles não acreditavam nem mesmo em anjos ou na ressurreição dos mortos! Por outro lado, os fariseus não apenas entendiam que todo o conteúdo a que hoje chamamos de Antigo Testamento (Tanak para os judeus) era de inspiração divina, e portanto fonte fidedigna para se definir a doutrina de vida, mas também acrescentavam a ela essa tradição oral, a qual diziam que “criava cercas ao redor da Torá” para que nenhum mandamento fosse violado.

Além desses, outros grupos divergentes existiam. Os essênios, como chama Josefo, eram uma “terceira seita” que repudiava tanto saduceus quanto fariseus, além de repudiar até mesmo o culto prestado no templo. O motivo, segundo eles, é que o sacerdócio que servia nele não era legítimo, pois não pertencia à linhagem aarônica (e nisso eles estavam 100% certos). Eles concordavam, porém, com os saduceus no que se refere à lei oral dos fariseus, a qual eles chamavam de “mandamentos de homens” (posição também defendida por Jesus). Mas não parava por aí. Eles criam que eram os últimos remanescentes do verdadeiro Israel, e por isso, ao menos uma parte da seita se separou completamente da sociedade judaica, refugiando-se em mosteiros no deserto da Judeia, provavelmente em Qumran (de onde vieram os Manuscritos do Mar Morto).

Até aqui já dá pra perceber que o judaísmo do primeiro século tinha suas “denominações”, as quais interpretavam as Escrituras de maneiras bem particulares. Mas, segundos os estudiosos, eles não eram os únicos. Outros grupos menos famosos, e provavelmente menores, também existiam. Fala-se, por exemplo, de um suposto “judaísmo galileu” e um “judaísmo da Judeia”, os quais se diferenciavam especialmente em termos de halacá (a aplicação prática dos mandamentos). E por cima disso tudo temos o próprio testemunho talmúdico, que é praticamente todo baseado em discussões entre rabinos dos mais variados temas da fé judaica, contendo algumas opiniões tão divergentes quanto se possa imaginar.

Portanto, tal pluralidade de pensamento, interpretação e prática precisa obrigatoriamente ser levada em consideração quando analisamos o ambiente cultural de religioso de Jesus e da igreja primordial. Caso a compreensão religiosa e doutrinária da maioria dos judeus da época fosse minimamente homogênea, então a fé cristã poderia facilmente ser percebida como uma religião estranha, com conceitos e inovações vindas de fora do contexto judaico. Entretanto, esse não é o caso. A doutrina cristã é solidamente apoiada em conceitos judaicos conhecidos na época de sua gênese, sendo hoje considerada pela maioria dos estudiosos do Novo Testamento como mais uma voz no diálogo e nas discussões hermenêuticas judaicas.